Argentinos ativam consumo em “modo bunker” enquanto esperam disparada de preços após 2º turno

População enche o freezer e a despensa diante da sensação de que alto grave vá acontecer e "economiza consumindo" para se proteger da inflação

Luciana Taddeo

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Na porta de um atacadista, Ana e sua filha seguram um pacote com 40 rolos de papel higiênico, um carrinho de feira e três ecobags cheias de produtos, enquanto esperam um motorista de aplicativo. É a segunda vez que a cena se repete em poucas semanas. Agora, elas contam com estoque de compras para três ou quatro meses – e pelo menos quanto aos produtos básicos, conseguirão se proteger da disparada de preços que os argentinos esperam após as eleições presidenciais de domingo (19).

Nas sacolas, há produtos de limpeza e de higiene pessoal, leite, bolachas e salgadinhos. “Teria comprado também papel toalha, mas estava em falta”, conta Ana. Ela começou a frequentar o atacadista há um ano, diante da alta dos preços – a inflação argentina é de quase 143% em 12 meses. “Estou sempre fazendo contas e conheço bem a realidade, é a maneira de me proteger”, diz.

Argentinos “economizam consumindo” com medo da inflação (Foto: Luciana Taddeo)

Muitos argentinos adquiriram o hábito de comprar mais do que precisam para a semana ou o mês, em uma tentativa de serem mais rápidos do que o avanço dos preços. Para Guillermo Oliveto, especialista em consumo, humor social e marcas, a ideia de “economizar consumindo” responde ao cenário de incerteza em que o país está imerso, além da brusca perda de poder aquisitivo.

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A sensação é de que não se deixa para amanhã o que pode ser comprado hoje, porque amanhã vai ser mais caro e talvez nem queiram te vender

Guillermo Oliveto, especialista em consumo

No dia seguinte às eleições primárias de agosto, quando o ultradireitista Javier Milei teve mais votos do que políticos tradicionais do país, o governo desvalorizou o peso em 22%, o dólar disparou no mercado paralelo, os preços foram remarcados e o abastecimento de certos produtos foi interrompido por alguns dias. Como resultado, a inflação passou de 12% em agosto e setembro.

A população, acostumada a impactos bruscos na economia após resultados eleitorais surpreendentes, correu para lojas e supermercados para se resguardar para o primeiro turno, realizado em 22 de outubro. Agora, compra o que consegue pensando no segundo.

Para conter a disparada do dólar no mercado paralelo, o câmbio oficial ficou congelado desde agosto. Além disso, antes e depois do primeiro turno, o governo levou a cabo fiscalizações em casas de câmbio ilegais para evitar especulações durante o processo eleitoral.

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Agora, a estratégia para minimizar o impacto na cotação do peso após o pleito de domingo, começaram a ser realizadas “micro-desvalorizações” diárias, iniciadas nesta quarta (15), até chegar a uma desvalorização de 3% por mês.

Ansiedade no ar e efeito “act now”

A ansiedade, no entanto, paira no ar. “Diante da sensação de que alguma coisa grave vá acontecer, a população enche o freezer e a despensa. Uns compram óleo de cozinha, outros carne, vinho, massa, arroz. Quem consegue compra televisores ou passagens aéreas”, diz Oliveto. “Como é muito difícil economizar, é melhor gastar agora. Por isso, as compras em ‘modo bunker’”.

Com a queda do poder aquisitivo da população e a dificuldade de ter acesso a propriedades, automóveis ou realizar viagens ao exterior, o argentino consome o que consegue. Em 2017, o salário médio no país era de US$ 1.800; hoje, ronda US$ 400, considerando a cotação do mercado paralelo.

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Devido ao efeito “act now”, o consumo não caiu, avalia Santiago Manoukian, chefe de research da consultoria Ecolatina. Apesar da perda de poder de compra e do crescimento da pobreza, que chegou a 40% no primeiro semestre, as políticas públicas de distribuição de renda – incrementadas pelo ministro da Economia e candidato Sergio Massa após as primárias – e a urgência de se livrar rapidamente dos pesos, antes que percam valor, ajudaram a manter a atividade econômica.

Já do ponto de vista da oferta, segundo Manoukian, o ritmo permaneceu porque o governo “forçou” empresas importadoras a recorrer a créditos comerciais, que aumentaram em US$ 13 bilhões em 2023. Para o especialista, é um problema.

Os níveis de pagamentos pendentes geram o risco de que [os importadores] parem de receber mercadorias. Os fornecedores estão pedindo pagamentos de dívidas para somente depois reestabelecer os negócios

Santiago Manoukian, chefe de research da Ecolatina

Devido à falta de dólares no Banco Central, o governo argentino apertou o cerco contra as importações. De janeiro a setembro, as importações argentinas caíram 10,1% em relação ao ano anterior. Segundo Manoukian, o governo argentino também pagou parte das importações e da dívida privada com empréstimos da ordem de US$ 11,5 bilhões da China.

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O contexto é ruim, mas a previsão da Ecolatina é de que a atividade econômica caia somente 1,5% neste ano.

Estoques de bem-estar e prazer

A sensação de que os “pesos queimam” nas mãos também leva o argentino a formar “estoques de bem-estar e prazer”. Segundo Oliveto, em um contexto de impacto psicológico gerado pela longa quarentena no país durante a pandemia, somado à incerteza econômica, o consumo atua como um “ansiolítico”.

Não à toa, shows internacionais recentes no país tiveram todos os ingressos vendidos (como os três de Taylor Swift nos últimos dias e os dez do Coldplay no ano passado), estádios de futebol estão sempre cheios, há recordes de presença em teatros e o turismo interno se intensifica.

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“Primeiro as pessoas estocam bens, alimentos. Depois saem sábado à noite, vão ao bar, comem uma pizza com amigos para esquecer a realidade. É a construção de bolhas de bem estar, e é transversal entre as classes sociais. Alguns comem em restaurante de luxo, outros fazem piquenique ao lado da estrada”, pontua.

Há muito medo do que pode acontecer depois das eleições, ganhe quem ganhar. Por isso, a sociedade está na defensiva e nessa situação de estocar bens e bons momentos

Guillermo Oliveto, especialista em consumo

Apesar da crise e dos preços em alta na Argentina, restaurantes como o Mengano, em Buenos Aires, seguem lotando (Foto: Luciana Taddeo)

Facundo Kelemen é dono do Mengano, um reconhecido restaurante de Palermo, em Buenos Aires, com capacidade para 40 comensais – que lota em plena terça-feira. Como os fornecedores reajustam os preços, ele costuma fazer correções mensais nos pratos. Por isso, o cardápio físico já não apresenta valores (só o digital).

Apesar do contexto econômico, a prosperidade do local já faz com que ele planeje a abertura de um bar. “Estamos indo bem e temos que aproveitar. É preciso continuar”, diz.

Para iniciar o novo empreendimento, porém, ele precisa esperar a incerteza sobre o que acontecerá com os preços a partir da semana que vem passar. “Há várias semanas pedimos orçamentos para construtoras e não enviam. Ninguém quer se arriscar”.