Acredite se quiser

Há quem creia que, caso eleito, Lula repetirá 2003 e escanteará seus economistas, adotando uma política ortodoxa. As condições objetivas para isto, porém, são muito diferentes das observadas há 20 anos, sugerindo que isto seja muito pouco provável
Por  Alexandre Schwartsman -
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A matéria recente da Folha de S. Paulo sobre a escalação do time de economistas assessorando a campanha do ex-presidente Lula talvez ficasse melhor localizada numa possível seção de (reprises de) filmes de terror, mas traz uma questão importante: até que ponto Lula leva a sério as propostas (na falta de melhor termo) de seus (também na falta de melhor termo) economistas?

A experiência de 2003 sugere que muito pouco. Para quem se lembra, o projeto econômico do PT em 2001 propunha uma completa reviravolta da política econômica de então, acabando com o compromisso fiscal e metas para a inflação, para não falar de uma atitude no mínimo ambivalente quanto às dívidas externa e doméstica (afora apoiar o plebiscito sobre o pagamento das dívidas externa e interna, sugeria “um limite de comprometimento das receitas com o pagamento de juros da dívida pública”).

Como se sabe, todavia, ao assumir Lula não apenas manteve o chamado “tripé macroeconômico” (câmbio flutuante, superávits primários e metas para a inflação), como se engajou em reformas na linha de seu antecessor, incluindo a previdência do funcionalismo e aprimoramentos dos mecanismos de crédito (como o consignado e a criação da alienação fiduciária para imóveis).

Mesmo no campo social as transferências focalizadas de renda aos mais pobres, muito criticadas por economistas do partido, foram reunidas no Bolsa-Família, carro-chefe da política social do ex-presidente.

Em outras palavras, quando precisou governar, Lula não hesitou em escantear os economistas de seu partido e trazer quem entendia do riscado, seguindo uma política econômica absolutamente alinhada à de Fernando Henrique, enquanto denunciava, é óbvio, a tal “herança maldita”.

Não é por outro motivo que muita gente (e gente boa, diga-se) acredita que, se eleito em 2022, Lula não teria maiores problemas para executar um novo duplo twist mortal carpado e tomar medidas que recoloquem as contas públicas em ordem, sempre em nome da governabilidade.

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Eu, obviamente, não tenho condições de saber o que se passa na cabeça de Lula, apesar de suas declarações recentes a respeito, em particular a afirmação sobre o país não precisar de reformas. Nem isto me interessa; o que pretendo olhar com mais cuidado é a alteração das condições objetivas para a prática do duplo twist mortal carpado.

No caso, a má notícia para quem aposta na capacidade acrobática do ex-presidente é que, ao contrário do legado de 2002, quem tomar posse em 2023 terá que lidar com a verdadeira herança maldita.

Um gráfico simples ajuda a ilustrar a questão. No segundo mandato de Fernando Henrique, o país passou por um ajuste fiscal considerável: embora ancorado mais pelo aumento da tributação do que pela redução de despesas, o superávit primário do setor público (governo federal, estados, municípios e empresas estatais), virtualmente inexistente em 1998, atingiu média de pouco mais de 3% do PIB naquele período, principalmente por força do desempenho do governo federal, cujo resultado saltou de 0,5% para perto de 2% do PIB.

Fonte: BCB

Em contraste, o setor público registrou modesto superávit no ano passado, 0,7% do PIB, enquanto o governo federal apresentou déficit (0,4% do PIB). Para este ano, as perspectivas são de retorno ao déficit, na casa de 0,8% do PIB.

Já a dívida bruta em 2002 equivalia a 65% do PIB (notando que nos referimos aqui à definição usada então, visto que a atual só começou a ser empregada em dezembro de 2006).

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No final do ano passado, pelo mesmo conceito de 2002, a dívida superava 92% do PIB; pela definição mais usada hoje, atingiu 80% do PIB e deve encerrar 2022 um pouco acima disto, 84% do PIB, segundo o Prisma Fiscal mais recente.

Nesse contexto, considerando que a taxa real de juros se situa em torno de 5% ao ano para o horizonte de 12 a 24 meses (passado o presente aperto monetário), enquanto as perspectivas para crescimento sustentado (não falamos aqui do crescimento pífio de 2022) do país se encontram na casa de 2% ao ano (segundo o relatório Focus), conclui-se que, para estabilizar a dívida seria necessário produzir um superávit primário de 2,5% do PIB [=84% x (5%-2%)].

Embora seja até inferior ao registrado no primeiro governo Lula, 3,5% do PIB, requereria um aperto fiscal muito maior: precisaríamos sair de -0,8% para +2,5% do PIB, ou seja, mais de 3 pontos percentuais do PIB, algo em torno de R$ 350 bilhões.

Dito de outra forma, independentemente dos possíveis desejos acrobáticos de Lula, as condições meteorológicas para piruetas não são as de 2003.

Não basta mais deixar o carro rodar nas mesmas condições que vinha rodando (e se aproveitar, como ocorreu, do aumento de PIS-Cofins em 2003 e 2004) para manter a estabilidade.

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Quem quiser produzir o ajuste fiscal requerido para recolocar a sustentabilidade da dívida pública nos eixos vai ter que gramar um bocado, enfrentando, de quebra, um Congresso Nacional muito mais fragmentado do que há 20 anos e uma população muito mais impaciente do que naquele momento.

Isto dito, apesar de o gasto federal (já deduzido o impacto da Covid no ano passado) ser bem mais alto do que o vigente em 2002 (18,5-19,0% do PIB contra 16% do PIB), a margem de manobra em termos de redução de gastos é muito menor.

Não há dados para 2002, mas os gastos obrigatórios – que representavam algo como 87% da despesa federal em 2007-2011 – hoje chegam a 92% do total.

Sem reformas, que de resto só produzirão efeitos em prazos mais longos, o caminho que sobra é o da elevação da carga tributária, cujas resistências são mais do que conhecidas.

Não por acaso, aliás, o ex-presidente faz uma exceção à sua ojeriza por reformas, defendendo mudanças tributárias, cujo sentido deixa claro: “está faltando que os ricos paguem sobre lucro e sobre dividendo. Aí quem sabe a gente vai arrecadar o suficiente para pagar as políticas públicas que o Brasil tanto precisa”.

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Acredite se quiser.

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Alexandre Schwartsman Alexandre Schwartsman foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander. Hoje, comanda a consultoria econômica Schwartsman & Associados. Formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, fez mestrado em economia na Universidade de São Paulo e doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley.

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