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O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) suspendeu o envio da Ação Civil Pública (ACP) contra a Boeing (BOEI34) da Justiça Federal para a Estadual. O relator do processo no tribunal, juiz federal Carlos Muta, também determinou que o governo federal e a gigante americana sejam intimados a se manifestar e deu ciência da ação ao Ministério Público Federal (MPF).
Muta atendeu parcialmente a um pedido da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde) e da Associação das Indústrias Aeroespaciais do Brasil (AIAB), que ingressaram com a ACP contra a Boeing. Elas acusam a gigante americana de ameaçar a soberania nacional, devido à contratação de engenheiros altamente qualificados em São José dos Campos (SP) — o berço da Embraer (EMBR3) e do setor aeroespacial e de defesa do país.
O relator do caso no TRF-3 afirmou, em sua decisão, que ela tem “caráter meramente conservativo”, para evitar o deslocamento do proceso “entre diversas instâncias judiciárias”, mas não acolheu o pedido para reconhecer a competência da Justiça Federal para analisar o caso. Muta também não analisou o mérito do recurso nem os pedidos liminares feitos pelas associações, por entender que isso exigiria “reconhecimento prévio da competência” e que antes é necessário ouvir as partes envolvidas.
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A Abimde e a AIAB recorreram ao TRF-3, com um agravo de instrumento, após o juiz Renato Barth Pires, da 3ª Vara Federal de São José dos Campos, se declarar incompetente para julgar o caso. Pires enviou o caso à Justiça Estadual após o governo federal afirmar no processo que não via ameaça à soberania nas contratações.
Procuradas, Boeing e Embraer informaram que não iam se pronunciar sobre o assunto. Já a Abimde e a AIAB não responderam até a publicação desta reportagem (a empresa brasileira é associada às duas instituições).
Entenda o caso
O InfoMoney tem mostrado nas últimas semanas que, anos após a Boeing desistir de comprar 80% da divisão comercial da Embraer por US$ 4,2 bilhões, a empresa americana tem avançado sobre os talentos da brasileira — e também de outras companhias do setor – de outra forma, contratando “a elite da engenharia aeroespacial brasileira”, nas palavras de Roberto Gallo, presidente da Abimde (veja mais abaixo).
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O foco tem sido engenheiros de nível sênior, principalmente das áreas de estratégia e aviônica, que têm anos de experiência, chefiam importantes áreas de desenvolvimento de aeronaves e acesso a informações privilegiadas de projetos com segredos industriais, como os caças Gripen. A Boeing já fez mais de 200 contratações desde o ano passado — dos quais cerca de 100 eram profissionais da Embraer — e ainda tem mais 35 vagas em aberto no Brasil no momento (com o avanço das contratações, ela tem buscado também engenheiros menos experientes).
Na Ação Civil Pública, as associações tentam impor uma série de restrições à Boeing. Elas pedem, entre outras coisas, que a empresa seja impedida de contratar mais do que 0,6% dos engenheiros por ano de cada uma das Empresas Estratégicas de Defesa (EED) e das Empresas de Defesa (ED), que atuam no desenvolvimento de Produtos Estratégicos de Defesa (PED).
Caso o pedido seja atendido, a Boeing seria limitada a contratar apenas 21 engenheiros da Embraer por ano — pois a empresa brasileira tem cerca de 18 mil funcionários atualmente, dos quais 3,5 mil são da engenharia — e praticamente nenhum profissional das empresas menores do polo tecnológico de São José dos Campos — pois ficaria limitada a contratar profissionais apenas das empresas com mais de 167 empregados na área.
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A gigante americana diz em suas manifestações que a Abimde e a AIAB “não possuem legitimidade ativa para propor uma Ação Civil Pública” e querem impedir a empresa de “exercer seu direito constitucional de livre contratação de funcionários”. Diz também que “as associações não fornecem qualquer base legal para as medidas extremas pleiteadas” e que o processo deve ser extinto.
A Boeing chama o limite de 0,6% de contratação de “número irrisório e arbitrário” e diz que “não pode ser impedida de oferecer bons salários e boas posições aos trabalhadores no Brasil”. Diz também que “engenheiros brasileiros são livres para trabalhar na empresa que ofertar melhores condições de trabalho, especialmente em um mercado altamente especializado”, e que proibi-la de contratar engenheiros “seria abusivo e desproporcional”.
“Não há nos autos qualquer elemento de prova e sequer se esforçam as autoras a indicarem quais segredos industriais da Embraer teriam sido indevidamente apropriados”, afirma a empresa americana. “Além de saltar aos olhos o uso de uma Ação Civil Pública para defesa de interesses individuais da Embraer, a ausência de informações mínimas sobre quais seriam as supostas informações confidenciais estratégicas evidencia não haver qualquer probabilidade de violação do pretenso direito”.
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Parecer de Nelson Jobim
Ao recorrer ao TRF-3, as associações apresentaram parecer de Nelson Jobim, que foi ministro e presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e ministro da Defesa nos governos Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Dilma Rousseff (PT). Segundo Jobim, “o aliciamento sistemático de engenheiros que atualmente integram os quadros de empregados de EEDs e EDs, feito pela Boeing, representa uma ameaça à nossa soberania nacional em vários níveis”.
O ex-presidente do STF afirma em seu parecer que “a noção de preservação da soberania nacional deverá obrigatoriamente orientar a atuação dos agentes estatais e todo o desenvolvimento da nossa ordem econômica”. “A se admitir que a Boeing possa indiscriminadamente contratar empregados de EEDs e EDs há elevado risco de informações sensíveis sobre projetos ligados à nossa defesa nacional ficarem sob domínio estrangeiro”.
“Trata-se de uma situação que impõe intervenção do Estado brasileiro, de modo a impedir a consumação de prejuízos ao desenvolvimento da nossa indústria nacional de material de defesa e que informações potencialmente sensíveis à nossa soberania caiam em mãos de empresas estrangeiras e outros países”, afirma. “Mostra, pois, justificada a imposição de condicionantes a tal atuação da Boeing, à semelhança do que o próprio Estados Unidos da América costuma aplicar”.
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Jobim diz ainda que, “em caso de confronto entre a livre iniciativa e a soberania nacional, deverá prevalecer esta última, considerando os interesses maiores da nação” (a Boeing usa o argumento da livre iniciativa para defender as contratações que tem feito no Brasil). “Trata-se de hipótese em que totalmente justificável a intervenção do Estado para impedir que a iniciativa empresarial possa pôr em risco o interesse público e a própria soberania nacional”.
As associações também afirmam, no agravo de instrumento ao TRF-3, que a Boeing “aparentemente” se aproveitou “das informações estratégicas que obteve em razão das tratativas frustradas para formação de joint venture com a Embraer”, para “tomar à força a capacidade produtiva de engenharia das empresas que conformam a Base Industrial de Defesa (BID), em vez de pagar o montante acordado contratualmente e ter a sua atuação limitada às bases contratualmente definidas”.
“A Boeing vem realizando uma captura sistêmica, contínua e abrupta de profissionais de engenharia do setor de defesa aeroespacial, especialmente daqueles com alto grau de experiência e formação, cuja reposição é impossível pelas empresas afetadas”, afirmam a Abimde e a AIAB.
“As associações autoras buscam, por meio da presente demanda, interromper consequências objetivas que são produzidas diretamente por essas condutas, cujos resultados, por si só, são suficientes para qualificá-las como inconstitucionais e ilegais”, aponta um trecho do documento. “Isso porque impõem um processo degenerativo à Base Industrial de Defesa Nacional, possibilitam ainda a transferência de tecnologias militares nacionais e segredos do Estado brasileiro a controle estrangeiro”.
Boeing x Embraer
A “disputa por cérebros” entre a Boeing e a Embraer no interior de São Paulo ocorre anos após a gigante americana desistir de comprar a divisão comercial da brasileira, em um negócio de US$ 5,2 bilhões. As duas empresas formariam uma joint venture, e a Boeing pagaria US$ 4,2 bilhões à Embraer por 80% da nova empresa (os outros 20% continuariam com a multinacional brasileira).
O negócio foi divulgado pela primeira vez no fim de 2017 e evoluiu para um acordo formal no começo de 2019. Mas, em abril de 2020, depois de mais de dois anos de negociação e adaptações (a Embraer chegou a segregar toda a sua divisão comercial do restante da companhia), a Boeing anunciou a desistência do negócio.
Na ocasião, o mundo vivia a incerteza do início da pandemia de Covid-19 e a Boeing enfrentava uma série de graves problemas com o 737-Max. Dois aviões do modelo caíram em um intervalo de cinco meses, matando 346 pessoas, o que fez com que governos proibissem o 737-Max de voar e companhias aéreas de todo mundo fossem obrigadas a permanecer com suas aeronaves em solo.
Ao anunciar a desistência, a Boeing afirmou que a Embraer não tinha cumprido o contrato. A empresa brasileira negou e disse que a Boeing rescindiu “indevidamente” o acordo, “fabricando falsas alegações”, e que a americana vinha adotando “um padrão sistemático de atraso e violações repetidas ao MTA (acordo), pela falta de vontade em concluir a transação, pela sua condição financeira, por conta dos problemas com o 737-Max e por outros problemas comerciais e de reputação”.
As duas empresas estão em um processo de arbitragem, que já se arrasta por quase três anos, para definir quem está com a razão (e se uma companhia deve indenizar a outra pelo fim do acordo).
Em seus balanços financeiros, a Embraer diz que “não há garantias com relação ao tempo ou resultado dos procedimentos arbitrais ou qualquer reparação que a Embraer possa receber ou perda que a Embraer possa sofrer como resultado ou com relação a tais procedimentos arbitrais”. Já a Boeing afirma que “a disputa está atualmente em arbitragem”, que não pode “estimar razoavelmente uma faixa de perda, se houver”, e que espera que o processo seja concluído “no final de 2023 ou início de 2024”.
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