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SÃO PAULO – Em meio ao ritmo lento da vacinação no Brasil, com duas doses aplicadas em apenas 12% da população, segundo dados do Ministério da Saúde, a Organização das Nações Unidas (ONU) anunciou que vai vacinar parte de seus funcionários no Brasil a partir deste mês.
Sem informar uma data oficial de início da imunização, a ONU explicou que a ação faz parte do “Programa Global de Vacinação das Nações Unidas”, que tem como objetivo “apoiar os países membros para garantir que o abastecimento nacional de vacinas seja orientado para a população prioritária do país”, afirmou a organização em nota enviada ao InfoMoney.
Em seu site, a ONU explica que o público-alvo da vacinação será: funcionários compõem a linha de frente de programas e projetos implementados pelas Nações Unidas no país. “Eles serão vacinados para garantir sua segurança e apoiar o plano nacional de imunização e o Sistema Único de Saúde (SUS), de modo a complementar os esforços do governo brasileiro pela vacinação”.
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Esse programa da organização está funcionando também em outros 65 países ao redor do mundo e a vacina que vem sendo aplicada é a da farmacêutica AstraZeneca, produzida em parceria com a Universidade de Oxford.
A novidade traz à tona a controversa discussão de alguns projetos de leis que flexibilizam as regras de compra de vacinas contra a Covid-19 por pessoas jurídicas. O InfoMoney separou os principais pontos sobre o tema e conversou com advogados e especialistas para entender por que a ONU conseguiu comprar as vacinas. Confira:
Compra de vacinas por empresas é polêmica
A participação do setor privado na vacinação em meio à pandemia divide opiniões. De um lado, com a falta de vacinas e o ritmo lento de aplicação ao redor do país, a ideia de compra por empresas seria uma alternativa: afinal, as empresas poderiam comprar mais vacinas e acelerar o processo de imunização ao aplicar doses em seus funcionários paralelamente ao calendário oficial do Programa Nacional de Imunização (PNI).
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Por outro, gerou questionamentos éticos. Isso porque a aquisição de doses por empresas privadas e entidades que as representam levantou críticas de que as companhias estavam “furando a fila” da vacinação pública no país – que, embora tenha avançado, ainda está atendendo grupos prioritários. Sob essas perspectiva, a pandemia é um desafio público e todos deveriam ter acesso às vacinas. O InfoMoney fez uma matéria sobre os dilemas éticos envolvidos na discussão.
Inclusive, no início deste ano, clínicas privadas brasileiras cogitaram negociar a aquisição de 5 milhões de doses da vacina indiana Covaxin, e empresas brasileiras buscaram adquirir um lote de 33 milhões de doses da Oxford/AstraZeneca, que no Brasil é produzida pela Fiocruz. Nenhum dos acordos foi para frente.
Na época, as farmacêuticas chegaram a se pronunciar afirmando que não comercializariam vacinas com empresas. A farmacêutica AstraZeneca, por exemplo, informou que não tinha condições de vender doses da vacina contra a Covid-19 para o setor privado brasileiro porque não conseguiria suprir a demanda privada.
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Marcilio Pousada, presidente da Raia Drogasil, também chegou a se pronunciar sobre os laboratórios não terem interesse em comarcializar com as empresas.
“Os laboratórios não têm vacina (para a iniciativa privada). Fui falar com a Pfizer, temos relacionamento centenário com a Janssen. Eles vão falar com o governo, que é o agente imunizador. Primeiro é o governo”, afirmou em meados de abril.
Situação atual não é favorável
Desde que a possibilidade da compra de vacinas contra a Covid-19 por empresas ganhou força em meados de fevereiro, nada mudou juridicamente, segundo Angela Kung, advogada sócia escritório Pinheiro Neto, na área de saúde.
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O que está em vigor hoje no que diz respeito especificamente à compra de vacinas pela iniciativa privada é a Lei n° 14.125/2020, que dispõe sobre a aquisição e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado.
Entre os principais pontos da lei, estão:
- Empresas poderão adquirir diretamente vacinas contra a Covid-19 que tenham autorização temporária para uso emergencial, autorização excepcional e temporária para importação e distribuição ou registro definitivo concedidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária [Anvisa], desde que sejam integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de serem utilizadas no âmbito do Programa Nacional de Imunizações (PNI);
- Após o término da imunização dos grupos prioritários previstos no Plano Nacional de Operacionalização (PNO), as empresas poderão, atendidos os requisitos legais e sanitários, adquirir, distribuir e administrar vacinas, desde que pelo menos 50% das doses sejam, obrigatoriamente, doadas ao SUS e as demais sejam utilizadas de forma gratuita.
Angela ressalta, no entanto, que embora alguns estados já estejam vacinando a população em geral, por meio das faixas etárias, os grupos prioritários previstos no PNO são 29 no total. “São muitos grupos prioritários, praticamente nenhum estado finalizou essa vacinação por completo. O que acontece é que a grande maioria dos estados está vacinando de forma concomitante, os grupos prioritários e a população em geral”, explica.
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Assim, na prática, conforme a lei, apenas quando todas as pessoas dos grupos prioritários, que somam cerca de 77,3 milhões de indivíduos, forem completamente imunizados, ou seja receberem as duas doses, as empresas poderiam começar a adquirir as vacinas. Entre os grupos prioritários estão idosos, pessoas com comorbidades, trabalhadores da limpeza, forças armadas, pessoas em situação de rua, trabalhadores de transportes públicos, trabalhadores da indústria, entre outros.
Além dessa lei, há uma série de projetos de lei em tramitação no Congresso que tentam flexibilizar as regras, na tentativa de permitir que as empresas adquiram as vacinas antes do previsto na Lei n° 14.125.
“O principal deles é o PL n° 3.982/20, que primeiramente tinha como objetivo discutir os grupos prioritários da vacinação, mas quando isso foi definido pelo PNO, houve um redirecionamento da pauta para a compra privada de vacinas. E outros surgiram a partir dele. Mas nenhum foi aprovado ainda, temos que esperar uma definição do Congresso”, explica.
Além desse, Gustavo Souza Junior, advogado do escritório Stocche Forbes, lembra que o PL n° 948/21, por exemplo, flexibiliza as regras em um nível que as vacinas não precisariam ter autorização da vacina para ser compradas por empresas, estende à vacinação a membros da família do funcionário e não menciona os grupos prioritários.
“As sugestões e projetos são vários, mas na prática as empresas não querem minar a credibilidade e aplicar vacinas não aprovadas pela Anvisa, por exemplo. Algum desses PLs vai passar? Talvez sim, sob a justificativa de que as empresas podem ajudar a acelerar ainda mais a vacinação”, diz Junior.
Porém, Paulo Almeida, diretor executivo do Instituto Questão de Ciência (IQC), entende que se algum PL desse tipo for aprovado, quando passar será tarde demais.
“Primeiro, há uma confusão regulamentar, já que são vários projetos e nada definido. Segundo, não vale a pena perseguir esse caminho no Brasil hoje. O cronograma federal mais conservador de vacinação vai até outubro, ou seja, há a expectativa de vacinar toda a população adulta até lá. Já foi ventilado, inclusive, setembro. Faz muito mais sentido correr com a agenda pública. Por ora, a melhor estratégia continua sendo comprar tudo o que tiver disponível e aproveitar a rede pública que temos”, diz.
Ele não descarta, porém, a possibilidade de compras por empresas acontecer mais para frente. “Depois desse período mais crítico podemos tentar entender se vai precisar de uma terceira dose e se as empresas podem ajudar, por exemplo”, afirma.
Angela explica que outro ponto que não favorece a compra de vacinas por empresas é a oferta: não há farmacêuticas que pretendem atender essa demanda hoje. “No início do ano, as duas opções mais prováveis eram a Sputnik V e a Covaxin, mas ambas estão com problemas para conseguir aprovações emergenciais padrões da Anvisa, entregaram relatórios precários em termos de informações, além dos imbróglios políticos levantados na CPI da pandemia. Nenhuma foi aprovada e as negociações não caminharam”, complementa a advogada.
O InfoMoney contatou a AstraZeneca, a Pfizer, o Butatan, que produz a Coronavac, e a Janssen, braço da Johnson&Johnson, para entender melhor como as empresas estão se posicionando hoje em relação à compra de vacinas por empresas. Até a publicação desta matéria somente a AstraZeneca não enviou seu posicionamento.
De fato, o Butantan afirmou que neste momento trabalha apenas para atender a demanda do Ministério da Saúde. A Pfizer explicou, que com base no acordo firmado e na disponibilidade de doses alocadas para o Brasil, neste momento também “não tem como dar andamento a uma negociação de fornecimento para estados, prefeituras e empresas privadas”.
A Janssen, por sua vez, ressaltou que neste momento, de uso emergencial durante a pandemia, “o fornecimento será exclusivo para o governo federal” e acrescentou que nenhuma pessoa física ou empresa está autorizada a negociar em nome da empresa.
Por isso, nenhuma pessoa física ou empresa está autorizada a negociar em nome da Janssen nossa vacina contra a COVID-19 com nenhum ente público ou privado, seja direta ou indiretamente.
Por mais que as empresas quisessem argumentar algo nesse sentido e elas poderiam tentar, a situação hoje não é favorável. “A urgência de aprovar alguma flexibilização diminui à medida que a vacinação, conforme o PNI, avança”, pontua Angela.
Ainda, vale lembrar que mesmo que uma empresa consiga a autorização para comprar as vacinas nos termos da Lei n° 14.125, o governo pode optar por não liberar a vacinação privada. O artigo 5º, Inciso XXV, da Constituição Federal prevê um mecanismo chamado de requisição administrativa. Na prática, ele permite que o governo federal recolha as doses das vacinas adquiridas pelas empresas e as redirecione para o PNI. As empresas seriam remuneradas por isso no futuro.
“No caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior”, diz a Constituição. Nesse caso, o perigo são as mortes causadas pelo coronavírus, sendo a vacina o instrumento mais eficiente no combate à pandemia.
O que diz a ONU?
Apesar da situação, então, por que a ONU conseguiu comprar as vacinas e tem autorização para aplicá-las em alguns de seus funcionários? Em nota, a organização explicou que não é uma empresa.
“Somos um organismo internacional. As vacinas foram adquiridas por meio do Programa Global de Vacinação das Nações Unidas e o recebimento no Brasil foi autorizado pelos órgãos competentes – Anvisa e Ministério da Saúde”, disse a empresa em nota.
Angela, do escritório Pinheiro Neto, explica que a ONU, de fato, não é uma entidade privada. “A ONU é um órgão supranacional. O texto da lei veda a compra por pessoas jurídicas de direito privado, o que, em tese, permite a movimentação da ONU, já que não é privada e poderia usar esse argumento para vacinar”, diz.
O InfoMoney contatou a Anvisa e o Ministério da Saúde para entender melhor sobre o funcionamento da autorização em casos como esse.
Em nota, a Anvisa explicou que nesse caso da ONU trata-se de um pleito do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). A autorização foi dada, em caráter excepcional, para a importação da vacina da AstraZeneca destinada à imunização dos funcionários do Sistema ONU no Brasil, “considerando a necessidade de proteger seus funcionários e agentes em trabalhos de campo”.
“A autorização excepcional foi aprovada pela Diretoria da Anvisa em 16 de junho, tendo por base legal a Lei n° 14.124/21, que não restringe a importação por organismos internacionais como é o caso da UNFPA, e a RDC n° 476, também de 2021. Consultado, o Ministério da Saúde manifestou-se de forma favorável ao pedido”, explicou a Anvisa.
A assessoria do Ministério da Saúde, por telefone, explicou que a ONU tem um tratamento diferenciado por ser um órgão internacional e que, de fato, a pasta foi consultada pela Anvisa e sinalizou positivo para a importação das vacinas.
Falta de vacinas
Segundo dados do consórcio de imprensa com base em dados das secretarias de saúde dos estados, até ontem (1), mais de 74 milhões de pessoas, considerando grupos prioritários e população em geral, tomaram a primeira dose, o que representa cerca de 35,2% da população total do país. Considerando as duas doses, foram 26,5 milhões de pessoas – ou cerca de 12,55% da população.
Vale lembrar que o país vem enfrentando falta de vacinas. São Paulo, por exemplo, vem registrando escassez pontual em diversos locais de aplicação. Em Minas, 186 municípios chegaram a ficar sem vacinas no início de junho. Florianópolis e Aracaju chegaram a suspender as vacinações locais em função da falta de vacinas.
Ainda assim, em 22 de junho, Marcelo Queiroga, atual ministro da Saúde, comemorou a chegada do primeiro lote com 1,5 milhão de doses da vacina contra Covid-19 da Janssen e disse que espera acabar com o caráter pandêmico da doença no país com toda a população maior de 18 anos vacinada com uma primeira dose até setembro.
“A certeza de que, em setembro, teremos a população acima de 18 anos imunizada com a primeira dose da vacina contra Covid-19 e a esperança de pôr fim ao caráter pandêmico desta doença”, disse, em sua fala no Aeroporto de Guarulhos, onde acompanhou a chegada das primeiras doses do imunizante, aplicado em dose única, ao Brasil.
O governo dos Estados Unidos doou 3 milhões de vacinas da Janssen ao Brasil no mês passado, e os imunizantes chegaram ao país há uma semana, mas ainda não foram distribuídos aos estados. O Ministério da Saúde afirmou que a distribuição começaria nesta sexta-feira (2).
A vacina da Janssen pode ajudar a acelerar o processo de imunização da população brasileira porque com apenas uma dose a pessoa que recebe a vacina já está 100% imunizada, enquanto que quem toma a Coronavac precisa da dose de reforço em até 28 dias e quem toma os imunizantes da Astrazeneca e da Pfizer precisa de uma segunda dose em 12 semanas (três meses).
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