Por onde anda o fan token da Seleção Brasileira? CBF toma calote e investidor perde quase tudo; entenda

BFT, fan token da CBF, não tem utilidade e carrega bastidor que envolve até demissão na confederação; clubes também tiveram problemas

Lucas Gabriel Marins

(Getty Images)
(Getty Images)

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Em meados 2021, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) lançou seu próprio fan token, o Brazil National Football Team Fan Token (BFT), em parceria com a Bitci, uma corretora de criptomoedas turca pouco conhecida no mercado. Foi uma festa: em 20 minutos após o lançamento, 30 milhões de ativos digitais foram vendidos, segundo divulgado pela própria entidade máxima do futebol nacional, totalizando cerca de R$ 90 milhões. A “oferta entrou para a história do esporte como a maior do mundo envolvendo tokens de torcedor”, disse a instituição na época.

Nesses quase dois anos desde o lançamento, no entanto, a CBF não falou mais nada sobre o criptoativo. Além disso, o ativo digital desabou e gerou enormes perdas para os investidores. Entre o final de 2022 (período da Copa do Mundo), quando alcançou seu preço máximo de US$ 1,53, e maio de 2023, o token caiu 96%, sendo negociado a US$ 0,06 na manhã desta quinta-feira (4). Foi a maior perda entre os fan tokens de outras seleções, que também desabaram no período: o ARG, da Argentina, recuou 88%; o POR, de Portugal, 85%; e o SNFT, da Espanha, 92%.

Desempenho do fan token BFT, da CBF, de setembro de 2022 a maio de 2023 (Reprodução/CoinMarketCap)

Fan tokens buscam oferecer utilidade ao dono, então não são necessariamente voltados para especulação. Mas, além de fazer os compradores perderem dinheiro, o token BFT nunca ofereceu benefícios ao detentor — e nunca deverá oferecer, porque nem sequer pode pertencer mais à CBF por questões contratuais.

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Não fosse o bastante, o token ainda rendeu um desfalque milionário para a confederação e gerou um mal-estar tremendo na entidade, que teria culminado em demissões, segundo fontes familiarizadas com o assunto que pediram para não ter o nome revelado.

Cadê a utilidade?

Os fan tokens fazem parte de uma categoria de criptoativos chamada de utility tokens, ou “tokens de utilidade”, na tradução para português. Esses ativos digitais recebem essa definição porque oferecem aos compradores acesso a serviços e produtos exclusivos, funcionando praticamente como um programa de “sócio-torcedor 2.0”.

Clubes brasileiros como Santos, Corinthians e São Paulo têm seus próprios exemplares. Detentores do SPFC, o fan token do São Paulo, por exemplo, puderam participar de enquete para escolher frases posicionadas no anel superior do estádio do Morumbi. Já os donos do SCCP, do Timão, ajudaram a definir o busto no Parque São Jorge, sede do clube. O Palmeiras vendeu recentemente 100 mil fan tokens VERDAO com a mesma promessa de utilidade.

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Os fan tokens da Bitci, no entanto, nunca ofereceram vantagem alguma para os detentores. No caso do BFT, existe a possibilidade de nenhum cidadão do Brasil ter adquirido o token, visto que o ativo não é negociado em nenhuma corretora nacional ou estrangeira com operação no Brasil. Além disso, no site da Bitci não há qualquer indicação de que a exchange tenha parceria com instituições financeiras locais para fazer transferência para contas bancárias brasileiras.

Perda milionária e demissão

Em nota enviada ao InfoMoney, a CBF disse que o acordo de patrocínio com a Bitci foi encerrado em outubro de 2022 em virtude de inadimplência. “A CBF tentou, de forma reiterada, manter a parceria. No entanto, em decorrência do descumprimento contumaz da Bitci e após o envio de sucessivas notificações, a CBF foi compelida a rescindir o contrato e a buscar o ressarcimento dos prejuízos causados pela empresa”, disse.

A dívida da Bitci com a confederação, segundo fontes ouvidas pela reportagem, foi de cerca de US$ 8 milhões por ano – quase R$ 40 milhões. O acordo também incluía repasse de ganhos da venda dos ativos digitais, o que não teria sido feito. A CBF não comentou o prejuízo, mas disse que “a dívida da Bitci com a entidade tem valor considerável”.

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Na parceria, a exchange turca havia ficado responsável pela emissão do fan token do Brasil e, em troca, a Seleção Brasileira estamparia o logotipo da empresa no site, no backdrop de sala de coletivas de imprensa e em outros locais, o que foi feito. O negócio incluía as seleções de futebol masculina e feminina, além das seleções Sub-20, Sub-17 e Sub-15.

Todo esse imbróglio com a corretora teria gerado demissões dentro da confederação. O caso foi apontado por pessoas próximas como uma das razões para a saída do espanhol Lorenzo Perales da diretoria comercial da CBF. Ele, que respondia publicamente pelo projeto do fan token, deixou a confederação em setembro de 2022.

Procurado, Perales disse que a alegação é “absolutamente falsa” e que hoje segue no Brasil “feliz em outra empresa e com um excelente relacionamento com a CBF e o presidente” da entidade. Falou ainda que o contrato da Bitci com BFT, mediado por ele, ajudou a confederação a ter lucro no ano passado, o oposto do que a entidade disse em nota.

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De quem é o token?

Outro grande problema envolvendo o fan token da CBF recai sobre os direitos de propriedade do ativo digital. No documento formalizado entre a exchange a confederação está estabelecido que se o acordo fosse desfeito por qualquer razão, as partes deveriam decidir se os fan tokens e os NFTs ainda não adquiridos seriam destruídos ou continuariam sendo negociados. No entanto, “fan tokens e NFTs comprados pelos fãs não devem ser queimados e devem continuar sendo mantidos pelos fãs e negociados nas exchanges e na plataforma”, diz um trecho do contrato.

Na prática, isso significa que, apesar de a Bitci e a CBF não serem mais parceiras, a empresa turca ainda é dona dos tokens da seleção brasileira, que, apesar da queda, ainda têm um valor de mercado de R$ 1,7 milhão, segundo dados do agregador CoinMarketCap.

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Na plataforma da Bitci e em corretoras como Gate.io, ProBit Global e CoinEx, entre outras, ainda é possível comprar os tokens BFT da CBF. Nas últimas 24 horas, segundo o CoinMarketCap, o volume negociado da moeda digital foi de US$ 90 mil. No site da Bitci, tanto no internacional como no nacional, a empresa continua utilizando fotos de Neymar e outros jogadores brasileiros para fazer publicidade do ativo, apesar do encerramento contratual.

A CBF informou que, a partir do término contratual, a Bitci não estava autorizada a utilizar nenhuma marca ou propriedade intelectual da CBF e protocolou um procedimento arbitral contra a Bitci, perante o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), um local que busca resolver controvérsias entre duas partes.

O InfoMoney entrou em contato com representantes locais da Bitci e com a Bitci Global por e-mail e mensagem nas redes sociais, mas ninguém respondeu até a publicação deste texto.

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Problema com outros clubes

Além da CBF, a Bitci fechou parceria com outros clubes brasileiros, como Coritiba, Ceará e Fortaleza. A empresa, como fez com a CBF, também não honrou os pagamentos. Por causa da falha no repasse, todos os times removeram a corretora da lista de patrocinadores oficiais.

Por meio de nota, o Coritiba informou que a Bitci realizou apenas um pagamento e deixou de adimplir com as demais parcelas, bem como não prestou contas de eventuais vendas do fan token. Disse ainda que notificou a empresa para que prestasse contas ao clube, bem como realizasse o pagamento dos valores vencidos. “Até o momento, não tivemos nenhuma resposta, apesar das diversas tentativas de contato”. O valor não foi revelado.

O Ceará, por meio de mensagem de WhatsApp, disse que iniciou junto com a exchange a cobrança dos valores devidos pela quebra contratual. O montante do contrato também não foi revelado. O Fortaleza também disse que não há mais acordo de patrocínio e que o contrato com a Bitci “está sob a tutela do Departamento Jurídico para demanda judicial mediante inadimplência”.

Não é só no Brasil que a Bitci enfrenta problema. Diversos times europeus que tinham parceria de publicidade com a empresa, como Sporting, de Portugal, e o Spezia, da Itália, cancelaram o contrato por falta de pagamento. O último foi o Celta de Vigo, na Espanha. Em nota divulgada em março deste ano, no Twitter, o time falou que “promoveu e disseminou imagens, marca, logo, produto e serviços da Bitci”, mas não recebeu os valores prometidos.

Empresa desconhecida

A Bitci foi fundada em 2018 em Bodrum, na Turquia. O cofundador e CEO é Onur Altan Tan, um bacharel em bioquímica e literatura inglesa formado em universidades dos Estados Unidos, de acordo com informações publicadas por ele no perfil no Linkedin. A empresa nunca teve relevância no mercado e só começou a ganhar espaço na mídia após a entrada no setor de fan tokens.

Em janeiro de 2022, Onur Altan Tan disse para o site especializado em cripto CoinDesk que iria aumentar a presença no Brasil. “Estamos abrindo uma exchange de criptomoedas no país porque temos ativos valiosos lá”, falou ele na época. O empresário brasileiro Alessandro Valente, conhecido no ramo de apostas, assumiu a presidência da Bitci no Brasil. Foi ele que fechou parceria com parte dos clubes locais, como o Coritiba.

De lá para cá, com a divulgação de notícias sobre a falta de pagamento e os problemas enfrentados pela empresa lá fora, não houve mais nenhuma movimentação da corretora no país. A reportagem contatou Valente por meio do Linkedin, mas não houve resposta. No perfil dele não consta o cargo de colaborador da corretora turca.

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Lucas Gabriel Marins

Jornalista colaborador do InfoMoney