* por Marcos Mortari

O governo federal editou, em 30 de abril de 2023, uma medida provisória (MPV 1.171/2023) para atualizar em 10,9% a faixa de isenção do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF), de R$ 1.903,98 para R$ 2.112,00, após 8 anos sem alterações.

Como forma de compensação dos impactos fiscais previstos, o texto também lançou uma nova tentativa de modificação na estrutura de tributação da renda aferida por pessoas físicas residentes no país em aplicações financeiras feitas no exterior.

A MPV unifica a tabela do imposto cobrado sobre aplicações no exterior (antes dividida entre renda e ganhos de capital), cria regras para a tributação em casos de empresas controladas no exterior (“offshores”) e introduz de forma inédita legislação sobre os chamados “trusts”.

Também é criada uma janela de transição, com adesão facultativa, em condições específicas de tributação favorecida, para o contribuinte atualizar o valor de bens e direitos mantidos fora do Brasil e se adequar às novas normas.

A medida é vista nos bastidores como uma espécie de “ensaio” para a segunda etapa da reforma tributária planejada pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), focada nos impostos sobre a renda, que deve sair do papel logo após a discussão sobre a reforma que trata da tributação sobre o consumo pelo Congresso Nacional.

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

É importante destacar que a proposição trata apenas da tributação da renda auferida por pessoas físicas em aplicações financeiras, entidades controladas e trusts no exterior e não afeta investimentos em território nacional nem aplicações envolvendo pessoas jurídicas brasileiras em outros países.

Veja os principais pontos em discussão no texto:

Quanto o governo pretende arrecadar com a nova tributação sobre investimentos no exterior?

Técnicos do Ministério da Fazenda estimam que a atualização da tabela do IRPF, em vigor desde 1º de maio, terá impacto negativo de R$ 3,20 bilhões sobre as contas públicas em 2023. Os cálculos indicam que a renúncia tributária será de R$ 5,88 bilhões em 2024 e de R$ 6,27 bilhões em 2025. E a promessa de Lula é levar a faixa de isenção para R$ 5 mil durante seu mandato.

Na outra ponta, os cálculos do governo indicam que a nova legislação envolvendo aplicações financeiras no exterior tem potencial de gerar arrecadação de R$ 3,25 bilhões em 2023 (neste caso, restrito à atualização do valor de bens e direitos, já que o novo regime de tributação da renda auferida no exterior somente começaria a gerar efeitos fiscais no ano seguinte), de R$ 3,59 bilhões em 2024 e de R$ 6,75 bilhões em 2025.

Por que o governo quer mudar a regra?

A equipe econômica argumenta que a medida oferece uma solução para o fato de haver mais de R$ 1 trilhão (ou US$ 200 bilhões) em ativos mantidos por brasileiros no exterior que “não pagam praticamente nada de IRPF sobre rendas passivas” com as regras vigentes, que permitiam o diferimento do imposto (ou seja, a procrastinação de qualquer recolhimento).

Atualmente, os investimentos de pessoas físicas no exterior podem ser estruturados de diversas formas. Uma das mais conhecidas são as sociedades − chamadas tecnicamente como Private Investment Companies (PIC), mas também referidas como “offshores”.

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

Nessas estruturas, o contribuinte pode utilizar de mecanismos para que a entidade intermediária aufira os rendimentos de ativos, mas represe os rendimentos no exterior, passando anos sem distribuí-los ao sócio pessoa física brasileira.

Na prática, isso implica o diferimento da tributação até o momento da efetiva transferência pela entidade para o sócio pessoa física residente no Brasil, seja em conta corrente em território nacional ou no exterior, ou no uso dos recursos para o pagamento de despesas pessoais do titular. É o chamado “regime de caixa”, que deixaria de existir para os lucros aferidos por offshores a partir de 2024.

“Conseguimos fazer uma medida que desonere o mais pobre [com a atualização da tabela do IRPF], financiando isso a partir de um ativo que não era tributado, a empresa offshore, e que é detido por pessoas de altíssima renda”, explica Daniel Loria, diretor de programa da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda.

O técnico acredita que a medida corrigirá distorções presentes no sistema, como diferenças de tratamento que privilegiavam o grande investidor que lançava mão de offshores e trusts em relação a pessoas físicas que aplicam recursos diretamente em ativos nacionais ou no exterior.

“Por definição, quem tem dinheiro fora é gente de um poder aquisitivo mais elevado. A faixa de entrada tem mudado um pouco [nos últimos anos], mas em geral é gente que tem dinheiro sobrando para aplicar fora. Estamos falando provavelmente de 1% ou algo muito próximo”, diz o advogado que participou da construção do texto.

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

No texto de exposição de motivos da MPV, o governo alega que o atual sistema provoca uma “quebra da neutralidade tributária” e “distorção alocativa”, em prejuízo aos interesses nacionais.

“Na prática, o diferimento tributário na tributação dos lucros das entidades controladas no exterior pode se estender por toda a vida da pessoa física, ou até mesmo após o seu falecimento, criando uma situação de grave injustiça tributária e atuando como um mecanismo de concentração de renda, ao desonerar os contribuintes de alta renda, que são os titulares dos investimentos no exterior”, diz o documento enviado ao Congresso Nacional.

Uma das consequências disso é a redução do potencial arrecadatório do Estado e possíveis impactos sobre a execução de políticas públicas, em prejuízo de camadas economicamente mais vulneráveis da população.

A situação é análoga à que ocorre no caso dos fundos exclusivos, em que o contribuinte passa anos sem recolher nenhum imposto – ao contrário do que ocorre com o chamado “come-cotas” na maioria dos fundos.

“O diagnóstico do problema estava escancarado na nossa frente. Era uma fratura exposta no sistema do Imposto de Renda no Brasil”, afirma Loria.

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

“Essa é uma daquelas situações em que estamos dando um benefício tributário para a pessoa física de altíssima renda investir fora do Brasil. Não faz sentido”, diz.

Como funcionava a regra para investimentos diretos de pessoas físicas no exterior?

Atualmente, os rendimentos auferidos por investimentos feitos diretamente pelas pessoas físicas no exterior podem ser tributados como rendimento ou como ganho de capital. No primeiro caso, estão enquadrados os ganhos recorrentes na forma de renda, como dividendos, aluguéis de imóveis, juros e cupons.

A tributação, nesta categoria, se dá pela tabela progressiva do Imposto de Renda – a mesma que incide sobre salários. Até 30 de abril, a tabela fixava na faixa de isenção ganhos mensais de até R$ 1.903,98 e a alíquota máxima, de 27,5%, incidia sobre os valores que ultrapassassem R$ 4.664,68. Com a MPV, a isenção subiu para R$ 2.112,00 e as demais faixas foram mantidas.

Tabela do IRPF de abril de 2015 a abril de 2023:

Base de Cálculo (RS)Alíquota (%)Parcela a Deduzir do IR (R$)
Até 1903,98zerozero
De 1903,99 até 2.826,657,5142,80
De 2.826,66 até 3.751,0515354,80
De 3.751,06 até 4.664,6822,5636,13
Acima de 4.664,6827,5869,36
(Lei nº 13.149, de 2015)

Tabela do IRPF a partir de 1º de maio de 2023:

Base de Cálculo (RS)Alíquota (%)Parcela a Deduzir do IR (R$)
Até 2.112,00zerozero
De 2.112,01 até 2.826,657,5158,40
De 2.826,66 até 3.751,0515370,40
De 3.751,06 até 4.664,6822,5651,73
Acima de 4.664,6827,5884,96
(Medida Provisória nº 1.171, de 2023)

O cálculo do IR devido pode ser feito no programa Carnê-Leão, e os rendimentos estão sujeitos ao ajuste anual, com possíveis deduções legais ou soma a outros rendimentos com tratamento de natureza similar dado pela legislação – o que pode elevar os valores devidos.

Já no caso de ganhos de capital com venda, resgate ou liquidação de ativos, como vendas de ações e imóveis ou resgates de cotas de fundos, aplica-se uma tributação exclusiva/definitiva separada, seguindo uma tabela que vai de 15% (para ganhos até R$ 5 milhões) a 22,5% (para o valor que superar R$ 30 milhões). O DARF, nesta situação, é gerado pelo programa GCAP.

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE

Tabela de Imposto de Renda sobre ganhos de capital:

– 15% sobre a parcela dos ganhos que não ultrapassarem R$ 5 milhões;

– 17,5% sobre a parcela que exceder R$ 5 milhões e não ultrapassar R$ 10 milhões;

– 20% sobre a parcela que exceder R$ 10 milhões e não ultrapassar R$ 30 milhões;

– 22,5% sobre a parcela dos ganhos que ultrapassarem R$ 30 milhões.

Para esta categoria de rendimento, há um limite de isenção do IR para os chamados bens e direitos de pequeno valor. Este montante é de R$ 20 mil para alienação de ações negociadas no mercado de balcão e de R$ 35 mil nas demais situações.

Nas duas situações, o IR é calculado e pago apenas no momento da efetiva realização do ganho. É o chamado regime de caixa. O recolhimento é feito a cada mês em que houver percepção dos ganhos pelo contribuinte, ativo por ativo.

Hoje, o sistema tributário nacional também prevê possibilidade de compensação do imposto já pago no exterior, desde que o país onde foi feito o investimento tenha acordo de não bitributação com o Brasil.

O que muda na regra para investimentos diretos de pessoas físicas no exterior?

O governo alega que as regras até hoje usadas para tributação de investimentos no exterior haviam sido “emprestadas” de outras situações e geravam insegurança jurídica. Com o argumento de simplificar o sistema, a medida provisória unifica as tabelas de cobrança de Imposto de Renda para tudo que classifica como aplicação financeira.

“Havia um risco para as pessoas, não havia uma regra. Tinha gente que mandava pagar 15% (tabela de ganhos de capital), outros mandavam 27,5% (tabela progressiva do IRPF). Você tinha que tomar uma decisão, e depois corria o risco de uma interpretação diferente da autoridade fiscal. Havia muita insegurança para as pessoas”, salienta Daniel Loria, diretor de programa da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda.

“Além disso, na aplicação financeira direta, as pessoas pagavam imposto todo mês em cima de cada ativo. Era uma dor de cabeça danada para o contribuinte nesse público de entrada”, diz.

Para a tabela unificada, a medida provisória cria três faixas de alíquotas para todos os casos cobertos pela proposta:

1) de 0% sobre a parcela anual dos rendimentos que não ultrapassar R$ 6 mil;

2) de 15% sobre a parcela anual dos rendimentos entre R$ 6 mil e R$ 50 mil;

3) 22,5% sobre a parcela anual de rendimentos que ultrapassar R$ 50 mil.

No caso de investimentos em aplicações financeiras no exterior feitas diretamente pela pessoa física, os rendimentos passarão a ser computados uma única vez a cada exercício, e não mais mensalmente, na Declaração de Ajuste Anual (DAA) e submetidos à incidência de IRPF somente no período de apuração em que forem efetivamente percebidos no resgate, na amortização, na alienação, no vencimento ou na liquidação das aplicações (regime de caixa).

Na prática, a alíquota máxima, de 22,5%, que incidia sobre ganhos de capital superiores a R$ 30 milhões anuais, passará a ser aplicada sobre rendimentos acima de R$ 50 mil. O texto não traz a possibilidade de compensação de perdas na consolidação anual dos tributos a serem recolhidos, considerando apenas a soma dos ganhos no período.

Uma das críticas mais frequentes ao texto apresentado pelo governo é que as alíquotas são muito “espremidas”, o que empurra a maior parte dos contribuintes para a faixa máxima, tributando proporcionalmente da mesma forma o pequeno investidor e o bilionário.

Ao InfoMoney, o diretor Daniel Loria explicou que a MPV não teve como alvo o público de entrada exposto ao mercado internacional – uma referência a cidadãos que remetem um volume menor de recursos com o objetivo mais relacionado a lazer e turismo do que investimentos.

“A pessoa que abriu a conta lá fora para mandar um dinheirinho, fazer um cartão de crédito num banco para gastar em uma viagem, não deveria ser impactada”, diz. Por esse princípio, ele explica que o governo manteve isenta a variação cambial da conta corrente não remunerada mantida no exterior por pessoas físicas. Da mesma forma, estão livres de impostos ganhos de até R$ 6 mil, que poderiam enquadrar pequenos ganhos por juros em conta.

“A intenção do 0% foi para não impactar pessoas que não eram o público-alvo da MPV. Os 15%, a seu turno, foram para pegar um público de entrada lá fora, com renda de até R$ 50 mil por ano offshore. Se pensamos em R$ 50 mil de renda do capital por ano, estamos falando que a pessoa tem pelo menos R$ 500 mil investidos offshore. Não é gente pequena para Brasil. Quem tem US$ 150 mil para manter fora do Brasil é gente com patrimônio, ainda mais na realidade brasileira. Esses ficaram em 15% [de alíquota], pontua”.

“Os 22,5% deixamos reservado para quem tem um retorno do capital maior lá fora. Se ele tem US$ 1 milhão lá fora, ele vai estar no 22,5%. Dentro da realidade do Brasil, achamos que essa calibragem ficou adequada”, afirma.

Vale destacar que as alterações previstas na MPV somente entrarão em vigor a partir de 2024, e caso a proposição seja convertida em lei pelo Congresso Nacional sem alterações nesses pontos específicos durante sua tramitação nas casas legislativas. Para não “caducar” (ou seja, perder a validade), o texto precisa ser analisado em até 120 dias.

Como fica a declaração de IR dos investimentos no exterior?

Pelo texto, os rendimentos serão computados na Declaração de Ajuste Anual (DAA) e submetidos à incidência do IRPF no período de apuração em que forem efetivamente percebidos pela pessoa física. Um campo separado na declaração do IRPF será criado pela Receita Federal para a inclusão das informações exigidas pela nova regra.

Quais investimentos estão sujeitos às novas regras da medida provisória?

O texto apresenta uma lista não taxativa de modalidades consideradas aplicações financeiras sujeitas à regra. São elas: depósitos bancários, certificados de depósitos, cotas de fundos de investimento (com exceção daqueles tratados como entidades controladas no exterior), instrumentos financeiros, apólices de seguro, certificados de investimento ou operações de capitalização, depósitos em cartões de crédito, fundos de aposentadoria ou pensão, títulos de renda fixa e de renda variável, derivativos e participações societárias (exceto as tratadas como entidades controladas no exterior).

E classifica como rendimentos os seguintes itens: remuneração produzida pelas aplicações financeiras, incluindo, exemplificativamente, variação cambial da moeda estrangeira frente à moeda nacional, juros, prêmios, comissões, ágio, deságio, participações nos lucros, dividendos e ganhos em negociações no mercado secundário, incluindo ganhos na venda de ações das entidades não controladas em bolsa de valores no exterior.

A MPV também diz que ganhos de capital percebidos pela pessoa física residente no Brasil na alienação, na baixa ou na liquidação dos bens e direitos localizados no exterior que não constituam aplicações financeiras nos termos do dispositivo permaneceriam sujeitos às regras específicas de tributação previstas na legislação em vigor. É o caso de imóveis, que seguem a norma vigente.

Como funcionava a regra para investimentos via entidades controladas no exterior (offshores)?

Atualmente, os lucros das controladas no exterior estão sujeitos à tributação apenas no momento da efetiva distribuição para a pessoa física, no chamado regime de caixa. Isso permite o diferimento de imposto por tempo indeterminado, gerando vantagem competitiva em relação a outras modalidades de investimentos.

Atualmente, a maior parte dos especialistas em direito tributário entende que a distribuição do lucro das offshores fica sujeita à tributação da pessoa física titular de acordo com a tabela progressiva do Imposto de Renda, que vai de 0% a 27,5%.

Na avaliação de integrantes do governo, contudo, trata-se de uma aplicação de regra criada para outros propósitos e que gerava distorções e insegurança jurídica.

“Não havia uma lei para isso. Quando você falava de aplicação financeira offshore, as pessoas pegavam emprestada a mesma regra de ganho de capital na venda de bens imóveis no Brasil e aplicava para negociação de ação da Apple em Nova York. Era um ‘puxadinho’, uma interpretação emprestada, a Receita Federal aceitava, mas a lei que eles usavam não tinha sido feita para essa situação. Por isso que havia uma progressividade que começava em R$ 5 milhões. Não faz o menor sentido”, observa Loria.

O que são offshores?

Offshore é um termo utilizado para designar “empresas” constituídas no exterior. Essas empresas podem ser uma sociedade limitada, ou uma sociedade por ações, como conhecemos no Brasil. Além disso, a depender da lei do país em que são constituídas, as offshores podem ser constituídas como sociedades ou entidades não personificadas, que não têm equivalente no Brasil, como foundations e fundos de investimento com normas bem diferentes dos fundos brasileiros. Nos fundos de investimento com classes de cotas (como os segregated portfolio funds), cada classe de cotas deve ser considerada como uma entidade separada.

A MP 1.171/2023 classifica como controladas as sociedades e as demais entidades, personificadas ou não, incluindo fundos de investimento e fundações, em que a pessoa física detiver, de forma direta ou indireta, isoladamente ou em conjunto com outras partes (inclusive em função da existência de acordos de votos), direitos que lhe assegurem preponderância nas deliberações sociais ou poder de eleger ou destituir a maioria dos seus administradores.

Também há identificação de controladas em casos em que a pessoa física possua, direta ou indiretamente, isoladamente ou em conjunto com pessoas vinculadas, mais de 50% de participação no capital social, ou equivalente, ou nos direitos à percepção de seus lucros, ou ao recebimento de seus ativos na hipótese de sua liquidação.

É ilegal ter offshore?

A constituição de empresas offshores não é vedada pela legislação, assim como a sua utilização para realização de aplicações financeiras no exterior, desde que a pessoa física remeta os recursos obedecendo as regras do Banco Central do Brasil, declare uma vez por ano o investimento na Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior (DCBE) e informe a offshore na Declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física (DIRPF, também conhecida como Declaração de Ajuste Anual – DAA).

Como identificar e fiscalizar a tributação desses ativos?

A identificação ficou mais fácil ao longo dos anos. Recentemente, mais de 100 países, incluindo a maioria dos paraísos fiscais, assinaram acordos multilaterais para facilitar o acesso a informações sobre ativos financeiros no exterior. Os saldos declarados em contas no exterior são informados todo ano ao governo brasileiro, sob o Common Reporting Standard (CRS). O EUA criou o Foreign Account Tax Compliance Act (FATCA), com funcionamento similar. O Brasil deu duas oportunidades para os contribuintes brasileiros regularizarem os seus ativos no exterior que antes não eram declarados, no Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), em 2016, e na sua segunda edição, de 2017.

Hoje, a manutenção de recursos em offshores não declaradas está limitada aos contribuintes que desejam, intencionalmente, praticar ato criminoso e responderão penalmente pelos seus atos, além de pagar os tributos com as multas cabíveis.

O que muda na regra para investimentos das offshores com a medida provisória?

As distorções existentes no atual sistema para favorecer as offshores são o principal foco da medida provisória editada pelo governo Lula.

A equipe econômica alega que houve tentativas não exitosas no passado de resolver o problema e que outros países já criaram legislação mais eficaz para lidar com essas estruturas de investimentos.

A MPV 1.171/2023 introduz uma regra de tributação periódica dos lucros, conforme a lógica do chamado “regime de competência”, que já existe para investimentos feitos por empresas brasileiras controladas no exterior.

O governo argumenta que o Brasil é um dos únicos países no mundo em que ainda é permitida a utilização de estruturas offshores por pessoas físicas para diferir indefinidamente o pagamento do tributo – prática que provoca quebra de isonomia tributária e prejudica a capacidade arrecadatória do Estado.

O Ministério da Fazenda alega que “as offshores em paraísos fiscais ou em países que possuem regimes fiscais privilegiados (isto é, de baixa ou nula tributação) são utilizadas com frequência por contribuintes de altíssima renda que visam investir no exterior”.

Essa estrutura permite que os contribuintes, normalmente de alta renda, posterguem por um longo período o imposto que deveria ser pago no Brasil, transmitindo o diferimento até mesmo para herdeiros, na sucessão.

“A legislação antiga induzia a fazer [investimentos no exterior] via offshore, já que na pessoa física o tratamento tributário era ruim. Na offshore, havia a consolidação de ganhos e perdas e o diferimento. Então, qualquer um que tivesse mais do que algumas centenas de milhares de dólares já pagava uma offshore”, diz Daniel Loria, do Ministério da Fazenda.

Pela nova regra, os lucros apurados pelas entidades passariam a ser tributados em 31 de dezembro de cada ano, independentemente se foram ou não distribuídos ao titular, seguindo a mesma tabela de tributação que as pessoas físicas (0% a 22,5%).

A aplicação da regra depende de dois critérios gerais:

1) a entidade deve estar constituída em jurisdição de tributação favorecida, conforme previsto na legislação, ou em paraíso fiscal; ou

2) sociedades no exterior com renda ativa própria inferior a 80% da renda total. Controladas que não se enquadrem nesses itens não estariam sujeitas às novas regras.

O texto classifica renda ativa própria aquela obtida diretamente pela pessoa jurídica mediante a exploração de atividade econômica própria, excluídas as receitas decorrentes, exclusivamente de royalties, juros, dividendos, participações societárias, aluguéis, ganhos de capital (exceto na alienação de participações societárias ou ativos de caráter permanente adquiridos há mais de dois anos), aplicações financeiras e intermediação financeira.

A MPV também avança sobre a classificação dos lucros sujeitos a tributação ao apontar para valores disponibilizados no pagamento, no crédito, na entrega, no emprego ou na remessa dos lucros ou quaisquer operações de crédito realizadas com a pessoa física, ou com pessoa a ela vinculada, caso a credora possua lucros ou reservas de lucros.

Quem será considerada pessoa vinculada à pessoa física residente no país sujeita à tributação prevista na regra?

O texto considera quatro situações:

1) A pessoa física que for cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, até o terceiro grau, da pessoa física residente no País;

2) A pessoa jurídica cujos diretores ou administradores forem cônjuges, companheiros ou parentes, consanguíneos ou afins, até o terceiro grau, da pessoa física residente no País;

3) A pessoa jurídica da qual a pessoa física residente no País for sócia, titular ou cotista; ou

4) A pessoa física que for sócia da pessoa jurídica da qual a pessoa física residente no País seja sócia, titular ou cotista.

Nos últimos dois casos, serão consideradas as participações que representarem mais de 10% do capital votante.

Como será a declaração no IR dos lucros apurados por offshore?

Será criada uma ficha nova na DAA para declarar todos os rendimentos decorrentes da aplicação do capital no exterior, nas modalidades de aplicações financeiras (diretas) e de empresas offshore. 

As aplicações financeiras feitas no exterior diretamente pela pessoa física passam a ser tributadas uma vez por ano. A alíquota é de 0% para rendimentos desta natureza de até R$ 6 mil por ano, 15% para rendimentos de R$ 6 mil até R$ 50 mil por ano e de 22,5% para rendimentos acima de R$ 50 mil por ano. 

Os lucros produzidos por empresas offshores passam a se submeter à mesma regra de tributação acima mencionada, uma vez por ano, em 31 de dezembro. A tributação ocorre no momento em que os lucros são apurados no balanço, independentemente de qualquer ato de deliberação de dividendos.

Pela regra, os lucros das controladas serão apurados de forma individualizada, em balanço anual da offshore, elaborado com observância aos princípios contábeis, de acordo com o disposto na legislação. Os valores precisarão ser convertidos em moeda nacional pela cotação de fechamento do dólar divulgada, para venda, pelo Banco Central, para o último dia útil do ano.

Para evitar dupla tributação, os lucros deverão ser incluídos na ficha de bens e direitos na DAA como custo de aquisição adicional do investimento, e, quando distribuídos para a pessoa física controlada, reduzirão o custo de aquisição do investimento e não serão tributados novamente.

Mas a norma não traz definições sobre como funcionaria o ganho cambial com o processo – que na prática, caso haja diferenças na cotação do dólar entre a apuração do lucro e sua efetiva distribuição, poderia suscitar em tributação adicional residual.

Em entrevista ao InfoMoney, Daniel Loria, diretor do Ministério da Fazenda, disse que o assunto ainda está sendo avaliado pela equipe econômica e a isenção não está descartada neste caso. “Estamos discutindo o melhor tratamento tributário. O que estamos buscando é que seja uma regra equilibrada e justa. Não queremos pesar a mão para um lado ou para outro”, disse.

O técnico também explicou que o ganho cambial sobre o principal aplicado somente será tributado na repatriação dos recursos, seguindo a tabela antiga de ganhos de capital, de 15%.

A medida provisória editada pelo governo também diz que poderão ser deduzidos do lucro da controlada os prejuízos apurados em balanço, pela própria controlada, desde que referentes a períodos posteriores à vigência da MPV e anteriores à data de apuração dos lucros.

Também poderá ser deduzida a parcela correspondente aos lucros e dividendos de suas investidas que sejam pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil. Além do imposto pago no exterior pela offshore e suas investidas sobre o lucro.

A MPV mantém a possibilidade de manutenção da regra antiga (de recolhimento de tributo sobre os lucros) no caso de resultados anteriores à vigência das novas regras. Neste caso, os lucros serão separados daqueles sujeitos às normas previstas no texto.  Mas haverá tributação como se houvesse efetiva distribuição caso a credora possua lucros ou reservas de lucros e realize quaisquer operações de crédito com a pessoa física, ou com pessoa a ela vinculada.

O que diz a medida provisória sobre os trusts?

A medida provisória também avança sobre a regulamentação dos “trusts”, que são uma ferramenta contratual sofisticada muito utilizada no exterior para a organização do patrimônio e da sucessão por famílias de alta renda. Tal instrumento costuma trazer regras de distribuição do patrimônio, carta de desejos do patriarca ou da matriarca e regras de funcionamento.

A nova regra trata os “trusts” como espécies de entidades transparentes, reconhecidas pela pessoa física. Pelo texto, durante o prazo de vigência dessas estruturas, os rendimentos e ganhos de capital relativos aos bens e direitos objeto dele deverão ser tributados pela pessoa que for considerada como titular na data do fato gerador. A norma inclui entidades controladas detidas pelo “trust”, consideradas detidas pela pessoa física definida como titular do patrimônio, e estarão sujeitas às regras gerais para esse instrumento.

Os bens e direitos objeto do “trust”, independentemente da data da sua aquisição, deverão, a partir de 1º de janeiro de 2024, em relação à data-base de 31 de dezembro de 2023, ser declarados diretamente pelo titular na Declaração de Ajuste Anual, pelo custo de aquisição. O texto abre, ainda, uma possibilidade para, caso a pessoa que tenha informado anteriormente o “trust” em sua DAA seja distinta do titular nos termos da MPV, o declarante poder excepcionalmente seguir considerado o titular para efeitos do IRPF.

Pela nova regra, a distribuição pelo “trust” ao beneficiário, a partir de 1º de janeiro de 2024, possuirá natureza jurídica de transmissão a título gratuito pelo instituidor para o beneficiário, consistindo em doação, se ocorrida durante a vida do instituidor, ou transmissão causa mortis, se decorrente do falecimento do instituidor.

Não é feita qualquer distinção entre “trusts” revogáveis e irrevogáveis – ponto que gerou polêmica no meio jurídico. O primeiro refere-se à modalidade em que o instituidor (“settlor”) entrega os bens para a administração e determina que, em caso de morte do instituidor, os beneficiários terão direito à herança dos bens estipulados. Mas, durante a vida, ele segue dono do patrimônio. Neste caso, o instituidor poderá, a qualquer momento, reaver os bens entregues ao administrador.

Já o segundo é caracterizado pela entrega de bens à administração e a instituição de herança, na hipótese de morte do “settlor”. Neste caso, ele deixa de ser proprietário dos bens transferidos. Críticos alegam que a MPV, ao igualar as duas modalidades, pode incorrer em risco de descumprimento do princípio da disponibilidade de recursos para efetiva tributação, caso haja cobrança automática de “trusts” irrevogáveis antes de qualquer disponibilização. O governo ainda estuda formas de regular este grupo minoritário na categoria.

Como funciona a atualização de bens e direitos no exterior?

A medida provisória também traz a opção para o contribuinte atualizar o valor dos seus bens e direitos no exterior para o valor de mercado em 31 de dezembro de 2022, tributando a diferença para o custo de aquisição (ganho de capital) pela alíquota definitiva de 10%, desde que haja o pagamento do imposto ainda no ano de 2023.

A alíquota menor se justifica porque, se a atualização não for feita, o contribuinte pagará o imposto somente quando a renda for efetivamente disponibilizada ao Brasil, segundo a regra geral anterior às mudanças, resultado em diferimento. Os investimentos em entidades controladas também poderão ser atualizados posteriormente para o período de 01 de janeiro de 2023 a 31 de dezembro de 2023. Especialistas, no entanto, manifestaram dúvidas sobre como ganhos com a variação do câmbio seriam tratados pelas novas regras.

O contribuinte que optar por não aderir à condição para atualização do valor de bens e direitos no exterior também deverá se atentar a segregar nos balanços futuros o que está sujeito às regras antigas e a parte que passará a respeitar as novas normas.

A atualização de bens e direitos no exterior já foi proposta durante o governo de Jair Bolsonaro (PL) na tentativa de reforma do Imposto de Renda encaminhada ao Congresso Nacional. Aquele texto previa alíquota de 6%, mas o dispositivo foi retirado da versão aprovada pela Câmara dos Deputados. O projeto de lei, no entanto, segue pendente de análise pelo Senado Federal.

Segundo Daniel Loria, diretor de programa da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, a atualização de bens e direitos é uma regra de transição que só faria sentido com a aprovação dos demais pontos previstos na medida provisória.

“Quando você muda uma regra, é preciso dar segurança jurídica ao contribuinte. Criamos uma regra de transição dizendo que ele pode zerar a pedra agora, na virada, com uma alíquota reduzida de 10%”, diz.

“Enxergamos isso como uma regra que não para de pé sozinha. Essa regra só existe porque estamos mudando a regra de tributação de offshore”, explica.

Quanto aos 10%, ele argumenta que a escolha levou em consideração o montante esperado de repatriação dos recursos, o montante que seria pago em imposto caso o contribuinte trouxesse de volta ao país os valores e a referência de alíquota baixa no sistema brasileiro.

“Dez por cento é a alíquota da previdência complementar de 10 anos”, destaca.

“Buscamos uma sintonia fina de uma alíquota de equilíbrio, que seja boa para o governo, para a arrecadação, e seja atrativa para o contribuinte optar. O que queremos como governo é que as pessoas façam a adesão, paguem o imposto e passem a régua na situação delas offshore”, afirma o técnico.

A medida vai trazer recursos para o Brasil?

Integrantes do governo acreditam que a medida traz maior isonomia ao tratamento tributário para diferentes formas de aplicações financeiras, sobretudo no comparativo entre investimentos nacionais e internacionais.

Desta forma, eles acreditam que um “efeito colateral positivo” da medida provisória seria tornar o mercado doméstico mais interessante com as novas regras em relação a alternativas de investimentos fora do país.

Outra consequência esperada com uma maior segurança jurídica sobre offshores é uma “integração” de patrimônio de investidores com aplicações no exterior, de modo a permitir que essas estruturas possam investir com mais facilidade em produtos financeiros brasileiros. O que na prática pode contribuir para a vinda de recursos para o país.

“Com essa MPV, trazemos muito mais transparência para os investimentos. Hoje, se você é uma pessoa física com uma offshore e minha offshore quer investir no Brasil, é superdifícil, porque o banco brasileiro não quer recebê-lo, porque você está em um limbo: não é estrangeiro, mas também não é brasileiro. O beneficiário efetivo está no Brasil, mas o titular direto é estrangeiro. Então, o banco fica receoso”, observa Loria.

“O que estamos fazendo é dizer que a pessoa pode investir onde quiser, mas tem que pagar imposto como se estivesse investindo no Brasil”, explica o diretor do Ministério da Fazenda.