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De olho nas mudanças de consumo do brasileiro, universidades dos setores público e privado desenvolveram cursos para estudar quem é o ‘novo consumidor’. Os objetivos variam: vão desde ajudar o cidadão a ‘consumir melhor’, de forma mais consciente, inclusive contribuindo com políticas públicas para este fim, a ajudar empresas a antecipar tendências de consumo e novas demandas da sociedade.
A Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) é uma das instituições públicas vanguardistas a estudarem o tema. Em 2016 criou o Curso de Bacharelado em Ciências do Consumo e está começando a formar profissionais para “analisar e compreender de forma crítica o consumo, o funcionamento da sociedade de consumo e as relações de consumo que nela se estabelecem”, conforme descritivo da universidade.
De acordo com a coordenadora do curso, a professora Maria Zênia Tavares da Silva, o profissional formado pela UFRPE pode ir além, propondo soluções aos impactos econômicos, sociais, políticos, culturais e ambientais gerados pelo consumo, atuando de “ponta a ponta” em toda a cadeia: da produção ao descarte, passando pelas políticas públicas que norteiam toda a jornada.
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Consumir não é só adquirir um produto ou serviço, tem várias outras questões relacionadas. O consumo nunca é isolado, tem as consequências”, diz a docente, ressaltando que o objetivo não é ter um olhar crítico ‘moralista’ ou ‘negativo’, mas fazer com que as pessoas consumam da melhor possível de acordo com as novas demandas da sociedade.
Maria Zênia destaca que o profissional formado poderá contribuir desde a produção, em pontos como a rotulagem de alimentos, por exemplo, até o questionamento crítico da industrialização crescente desses produtos. “Os alimentos que a gente tem hoje na nossa mesa estão cada vez mais industrializados, ultraprocessados. Não é questão de ser contra a indústria, mas de que forma essa indústria está trabalhando e qual o objetivo? É de atender a necessidade da população ou gerar lucro? A gente tá vendo que hoje, atualmente, cada vez mais o alimento está se tornando mercadoria. A preocupação maior é industrializar e processar os alimentos. E com isso a gente vê mudança social, econômica ambiental e cultural na questão da alimentação, muda a forma da gente se alimentar”, complementa. Afinal, o cidadão consome o que está disponível, e nem sempre o que está disponível para compra é o desejável – pensando no trabalho do profissional da área com o viés de conscientização para uma alimentação mais saudável, por exemplo.
Já na outra ponta, a coordenadora do curso ressalta que os alunos são preparados para se preocuparem com os resíduos gerados e suas consequências – como é o caso das embalagens. “A gente também compra com os olhos, mas para onde é que vai esse lixo?”, questiona, reforçando ainda que o cientista do consumo deverá ter um olhar amplo para as políticas públicas em relação ao meio ambiente, que vão desde como são tratados os resíduos sólidos até os profissionais que trabalham na coleta do lixo, como os catadores.
Como ensinar o consumidor a consumir?
Um dos principais objetivos do curso é preparar os futuros profissionais de Ciências do Consumo a educar o consumidor não só sobre seus direitos e deveres, mas também a não deixar que o consumo interfira negativamente na sua vida. Afinal, a partir do momento que os brasileiros passaram a ter mais acesso ao emprego e melhoraram a renda, também passaram a consumir mais, criando-se o risco do consumo desenfreado e, consequentemente, o crescimento do endividamento.
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“O consumo consciente é um exercício de cidadania”, comenta Maria Zênia. “Mas o nosso desejo não tem limite, o sonhar não tem limite, mas a renda dá um limite e o cartão de crédito interfere nesse limite. Como é que o cartão de crédito interfere? No momento que eu não vou pagar no final do mês, mas a conta chega”. Os profissionais da área têm trabalhado com educação financeira em escolas privadas que já oferecem aulas com esse viés, conta a coordenadora do curso.
Ela conta ainda que a pandemia de Covid-19 acabou impactando o curso de diversas formas, inclusive com a desistência de alunos. Neste ano, contudo, a universidade retomou a abertura de editais para projetos de pesquisa e extensão e o curso de Ciências do Consumo será contemplado, podendo ampliar as iniciativas que já estão em andamento.
“Temos 11 projetos. Estou com um projeto com as feiras agroecológicas aqui no Recife com os consumidores e com os produtores, tem colegas com projeto sobre o endividamento e aí estão diretamente com o Procon, tem outro projeto sobre rotulagem de alimentos e tem uma colega que está com um projeto sobre a leitura de etiquetas das roupas. Tem vários projetos, de qualificação profissional, de crianças, é um leque grande”, explica.
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Beatriz Matias, 22 , que ingressou na UFRPE em 2019, é uma das estudantes do curso que participaram dos projetos de extensão e pesquisa – entre eles, um programa que ensinava alunos de escolas públicas e privadas a entenderem rótulos de alimentos.
No início de 2023 ela começou a estagiar no Procon de Camaragibe, município localizado na região metropolitana de Recife. Beatriz conta que se apaixonou pela área, “principalmente na parte do serviço público de ajudar as pessoas”. Como estagiária da fundação, relata ter participado de várias ações educativas, que incluem desde a produção de material educativo para consumidores e fornecedores até visitas presenciais nos bairros. “A gente sai da sala e vai até os bairros para fazer o atendimento desses consumidores mais vulneráveis que não conseguem chegar ao posto de atendimento e damos essas orientações mais breves”, narra.
Os materiais contemplam informações que explicam ao consumidor para que serve o órgão e quando ele deve buscar o Procon, por exemplo. Beatriz diz querer continuar trabalhando na área e acredita que ainda há bastante trabalho a ser feito. Segundo ela, mais do que ter o acesso à informação, o consumidor ainda tem dificuldade de compreender o que está na legislação, e o profissional de ciências do consumo pode contribuir ajudando a traduzir esses termos, trabalhando lado a lado com os advogados. “Porque o profissional do Direito visa muito a legislação, mas como vou chegar para um consumidor vulnerável, que às vezes não tem nem um ensino médio e dizer assim ‘isso aqui tá errado, porque aquela empresa infringiu o artigo tal’. O cientista do consumo tem um olhar mais, digamos, humanizado”, complementa.
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Antena de tendências
No âmbito privado, a ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) é a instituição de ensino que oferece, desde 2015, graduação em Ciências do Consumo. O coordenador do curso, professor Tiago Pereira Andrade, conta que o objetivo com o lançamento das aulas foi aproveitar a oportunidade de ampliar o diálogo entre universidade e mercado.
Segundo ele, outros cursos e disciplinadas da área de “humanas” acabavam formando mais professores e pesquisadores, com senso crítico mais aguçado, mas que não necessariamente engajavam essas pessoas no mercado. “Do outro lado, cursos como administração, economia e engenharia levavam mais pessoas ao mercado por terem um pensamento mais prático e técnico, mas que faltava um senso crítico, uma sensibilidade e um conhecimento maior sobre o ser humano”.
O desafio neste cenário foi desenhar uma grade curricular que unisse essas duas frentes. O resultado é o curso atual que já formou cerca de cinco turmas e se propõe a estudar o comportamento humano, mas cuidando para que o profissional não chegue “cru” a uma empresa sem entender a linguagem corporativa ou ter noções de gestão e marketing. Além disso, conta Andrade, ao longo do tempo a grade foi sendo revisada e foram acrescentadas aulas de economia comportamental e neurociências, por exemplo.
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Atualmente, o ensino está focado em preparar os futuros profissionais em três pilares:
- Estudo de tendências, com alunos que passam a trabalhar com pesquisa;
- Diversidade e inclusão, devido ao desenvolvimento de olhar crítico e conhecimento da sociedade; e o
- “Tecno-humanismo”, que trata das dificuldades da relação do homem com as máquinas, ou as relações entre os seres humanos intermediadas pelas mídias.
“Obviamente esses três pilares são permeados, principalmente, pelo consumo. Não adiantaria nada a gente fazer todo esse desenvolvimento se não tivesse também uma utilidade: simultaneamente melhorar a sociedade e o mercado”, comenta o coordenador do curso na ESPM. Ele explica que o principal benefício para as empresas contarem com um profissional com essa formação é de alguém que “não está só enxergando o consumidor, está enxergando um ser que também consome”.
Partindo dessa premissa, é possível, por exemplo, aperfeiçoar produtos e serviços olhando além do lucro. E quem se forma, acrescenta Andrade, tem ingressado em áreas como Moda e Empreendedorismo.
Este é o caso de Felipe Gimenez, que se formou no curso da ESPM há três anos. Ele conta que “se apaixonou” pela grade do curso, caminho escolhido para trabalhar com o que ele sempre quis: o “empreendedorismo de impacto”, ou seja, um negócio que gerasse um impacto socioambiental.
Gimenez desenvolveu como trabalho de conclusão de curso (TCC) um projeto de eletrificação de um carro a combustão. “As pessoas tinham muito medo do carro elétrico, de problemas de qualidade, e, principalmente, de autonomia. É importante entender as ansiedades do consumidor para traçar estratégias na hora de fazer um produto, de criar um negócio. Acho que isso foi o principal [aprendizado] dentro do curso”, relata. Ele destaca ainda o estudo da sustentabilidade, com matérias sobre questões ambientais e sociais relacionadas ao TCC.
“Hoje estou fazendo um projeto que nasceu desse do carro: trabalho com bicicletas elétricas. A gente faz um kit para eletrificar bicicletas comuns, qualquer bicicleta”, informa. A ideia é fornecer os kits a entregadores de delivery para que eles transformem as bicicletas que já possuem em modelos elétricos, reduzindo o custo do acesso a um item relativamente caro (a partir de R$ 6 mil), o que pode reduzir os desgates da função. “Eles vêm pedalando de onde moram até o local em que trabalham e normalmente é uma distância grande. O profissional já chega cansado para começar a fazer as entregas”, pontua Gimenez. O projeto, segundo ele, está em fase inicial.
Na avaliação de Gimenez, universidades podem contribuir com o desenvolvimento de novos negócios porque acabam funcionando como incubadoras de projetos facilitando o contato com o mercado. Contudo, o poder público tem uma participação importante, uma vez que o negócio pode depender de regulamentação para funcionar.
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