Belas, feministas e economistas: por que somos contra a diferenciação de gênero na reforma da Previdência

As reivindicações dos que defendem a diferenciação de idade são justas e as motivações, compreensíveis. Entretanto, o raciocínio contém falhas

Terraço Econômico

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*Por Rachel de Sá, Editora Terraço Econômico

“Você tem tanta sorte. Seu marido te ajuda nas tarefas de casa e a cuidar dos filhos. Até lava a louça! Que privilégio”. É comum ouvir esse tipo de comentário no Brasil, mesmo vindo de mulheres – e mesmo no século XXI. Infelizmente, é essa a percepção de boa parte da população brasileira, que ainda acha normal que profissionais sejam julgadas por colegas por sua aparência física, ou que “mulher de respeito” tem que se dar valor. Até nosso atual excelentíssimo Presidente da República, o mesmo que acertou em cheio em sua equipe econômica, profere gafes atrás de gafes ao externalizar suas opiniões nada heterodoxas sobre mulheres que “fazem conta no supermercado”, ou que deveriam servir de exemplo para governos, que “precisam de maridos”.

Porém, não se engane. O repúdio a uma sociedade machista não nos cega à realidade dos fatos, muito menos nos confunde quanto ao papel de políticas públicas. Pelo contrário, este é um dos motivos pelos quais defendemos a não diferenciação de gênero na Previdência Social – mudança incluída na proposta original do Ministério da Fazenda, mas alterada na versão atualmente sob tramitação no Congresso. O texto prevê o estabelecimento gradual de idade mínima de 62 anos para mulheres e 65 para homens, mantendo a atual diferenciação de gênero existente em nosso sistema previdenciário.

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As reivindicações dos que defendem a diferenciação são justas e as motivações, compreensíveis. Entretanto, o raciocínio contém falhas. Atualmente, a maior parte das mulheres tem, sim, jornadas duplas, trabalhando fora e dentro de casa. Porém, não deve ser a Previdência o mecanismo para ajustar desigualdades ainda existentes entre homens e mulheres, tampouco a aposentadoria precoce a solução para a triste realidade brasileira, onde mulheres ainda recebem, em média, 25% a menos do que homens. É claro que é desejável que as mulheres recebam uma compensação por trabalharem mais que os homens e ganharem menos, mas seria esse o papel da Previdência? A resposta é não. Primeiro, a crueza de um fato: lamentavelmente, não há como contabilizar o trabalho extra realizado pelas mulheres. Embora nosso sistema previdenciário não seja de capitalização, os pagamentos correntes ainda são deduzidos das contribuições, que não incidem sobre a segunda jornada da mulher.

Sim, seria correto que essas diferenças fossem equacionadas. Porém, isto não torna mais acertada a concessão arbitrária do benefício de se aposentar mais cedo. Sem o dimensionamento necessário para a estabilidade do sistema de pagamentos previdenciários, os valores extras recebidos pelas mulheres ganham o caráter de benefício social. E a Previdência, apesar de suas características distributivas, não é um programa social. Isso pode parecer duro, mas precisamos assimilar a importância de manter as atribuições do governo bem delimitadas. A cada instituição, sua responsabilidade. A cada política pública, seus limites. Assim, ganhamos em eficiência, transparência e eficácia. Não compete à Previdência redistribuir renda de modo a compensar desigualdades existentes por motivações diversas, assim como não cabe ao Banco Central combater o desemprego ou ao Ministério da Saúde formar médicos de qualidade.

Combater as desigualdades de gênero, assim como as existentes entre profissões ou localizações geográficas, requer políticas sociais específicas, principalmente aquelas que são capazes de diminuir as barreiras de acesso a oportunidades. Ações do Ministério do Desenvolvimento Social, por exemplo, têm impacto evidente no bem-estar das mulheres. As diferenças de salário e educação se ampliam nas faixas de renda mais baixas [3], que são justamente as que o Ministério busca auxiliar com transferências de renda. O Ministério da Educação, por sua vez, deve ter a responsabilidade de conduzir políticas inclusivas no setor direcionadas às mulheres, assim como o Ministério dos Direitos Humanos deve zelar pela dignidade e integridade física e moral de mulheres na sociedade. Políticas como a de ampliação do número de creches, a nível municipal, são outro exemplo de como apoiar o maior envolvimento de mulheres no mercado de trabalho – ao simplesmente permitir que esta possa trabalhar fora sem o ônus financeiro que, muitas vezes, é a própria razão pela qual estas tornam-se as únicas responsáveis pelo cuidado dos filhos.

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Além disso, estabelecer uma diferenciação de idade para mulheres na Previdência pode acabar sendo um verdadeiro tiro no pé, ao fortalecer ainda mais a própria discriminação que pretende combater. Permitir que mulheres se aposentem mais cedo, admitindo seu papel solo em cuidar da casa e dos filhos, apenas corrobora a realidade atual, podendo reafirmar preconceitos. Compensá-las mais tarde por seu “duplo esforço” reforça o caminho na direção oposta da mudança de mentalidade, simplesmente tapando o sol com a peneira.

Por fim, mas não menos importante, cabe lembrar aqui o motivo primordial pelo qual enfrentamos atualmente a difícil tarefa de reformar nosso sistema previdenciário: o famoso fiscal. Gastos com o INSS (Previdência mais benefícios sociais, como o BPC e a licença a maternidade) atingiram mais de 12% do PIB em 2016, correspondendo a mais de 40% do gasto primário do governo. O mais famoso ainda déficit da previdência atingiu R$ 149,7 bilhões em 2016, equivalente a 2,4% do PIB e a um aumento de 74.5% em relação a 2015. Na ausência de reformas, o governo projeta que o déficit explodirá em 18% do PIB em 2060. Naturalmente, a recessão pressiona o déficit, com o desemprego tendo impacto negativo nas contribuições. Mas o cerne do problema não é conjuntural: o envelhecimento da população é estrutural. Nada, nem mesmo sob as mais nobres intenções, poderá ser feito para alterar essa realidade. Reformar é preciso.

E o que dizem os números sobre as mulheres? Estatísticas atualizadas da própria secretaria da Previdência do Ministério da Fazenda mostram que: i) não entramos no mercado de trabalho mais cedo ou mais tarde do que nossos amigos da dupla de cromossomos XY – a idade média é de 23 anos para ambos os sexos; ii) não temos mais tantos filhos – a taxa de fecundidade caiu de 4 para 1,7 filhos dos anos 80 para cá; iii) quando jovens (entre 16 e 24 anos), nosso rendimento é praticamente igual ao dos homens, aproximando-se em cada faixa etária ao longo do tempo; e, finalmente, iv) vivemos mais, de qualquer perspectiva que se olhe – a expectativa de vida ao nascer para mulheres é 79,1 anos, comparada com 71.9 anos para homens; a expectativa de sobrevida aos 65 anos para as mulheres é de 19.8 anos, enquanto para os homens é de 16.7. Lembrem-se. Números não mentem e contra dados, não há argumentos.

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Defendemos, portanto, uma reforma da previdência que determine regras universais para todos os brasileiros, buscando um sistema equilibrado do ponto de vista fiscal e o fim de privilégios ou compensações. Vale notar, neste ponto, que a infeliz manutenção dos últimos por outros grupos da sociedade nos entristece igualmente. Isso, entretanto, não enfraquece nossa defesa da boa e velha matemática:

igualdade de gênero = igualdade de deveres + direitos + oportunidades

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O Terraço Econômico é um espaço para discussão de assuntos que afetam nosso cotidiano, sempre com uma análise aprofundada (e irreverente) visando entender quais são as implicações dos mais importantes eventos econômicos, políticos e sociais no Brasil e no mundo. A equipe heterogênea possui desde economistas com mestrados até estudantes de economia. O Terraço é composto por: Alípio Ferreira Cantisani, Arthur Solowiejczyk, Lara Siqueira de Oliveira, Leonardo de Siqueira Lima, Leonardo Palhuca, Victor Candido e Victor Wong.