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Dados da economia e defaults de hipotecas na China: o que há de exagero nas análises?

O problema da Evergrande foi muito pior do que o presente episódio de atraso de hipotecas de empreendimento inacabadas
Por  Roberto Dumas Damas -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Nunca foi aconselhável ler os dados econômicos vindos da China sem uma pitada de sal. Alguns dados podem ser estritamente corretos, mas a metodologia para determiná-los foge um pouco o senso comum econômico.

Tomemos por exemplo as vendas ao varejo. Comumente, utilizamos as vendas ao varejo com um excelente proxy do consumo das famílias. Entretanto, na China, vendas ao varejo incorporam também vendas ao governo.

A aqueles que se interessarem, convém verificar como as vendas ao varejo geralmente subiram, enquanto a participação do consumo das famílias caiu a 35% em 2011, mostrando claramente um desbalanceamento do modelo de crescimento econômico chinês, apontado pelo ex-premiê Wen Jiabao (na era Hu Jintao, então presidente) em seu famoso clame: “China´s economy is unstable, unbalanced, uncoordinated and unsustainable”, ou os famosos 4 “uns”.

Outro exemplo de indicador, que devemos analisar como é construído, para não errarmos em diagnósticos mais precisos, é o nível de desemprego.

Atualmente, a população chinesa é dividida em 60% de residentes na zona urbana e 40%, na zona rural. Eis que, quando Deng Xiaoping assumiu o poder em 1979, estabeleceu o conhecido “land of usage rights”, conferindo ao residente rural, sem o “hukou” ou passaporte para residir na zona urbana, uma gleba de terra para ser utilizado por 30 anos.

Acontece que grande parte dessas terras são vendidas aos governadores locais, como forma de a província atrair plantas manufatureiras, de modo a impulsionar a atividade local e ajudar os governantes a subirem no politburo (comitê executivo) do Partido Comunista Chinês.

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Independentemente desses “land of usage rights” serem muitas vezes vendidos aos governantes locais a preços intrínsecos para a agricultura, abaixo portanto do valor de mercado, e às vezes à força, as estatísticas do governo chinês não consideram formalmente como desempregados a população rural efetivamente desempregada, por terem vendido suas terras aos governantes locais.

Eis que no cômputo oficial do nível de desemprego chinês, utiliza-se apenas a população urbana como base da força de trabalho, ou apenas 40%. Se estimarmos que entre 5% a 10% dessa população urbana esta ilegalmente nas regiões urbanas, então o nível de desemprego oficial do governo chinês é calculado levando em consideração apenas 30% a 35% da população do país, ou seja claramente um número misleading [errôneo] da real situação de emprego na nação.

Mas o que isso tudo tem a ver com o nosso artigo? Chegaremos lá.

Primeiro falemos do crescimento do PIB chinês durante o segundo trimestre do corrente ano, caindo 2,6% em comparação com o trimestre anterior e subindo 0,4%, quando comparado com o mesmo período do ano anterior.

Mesmo com o relaxamento do “plano” Covid zero, em junho deste ano, é difícil acreditar que de fato a economia chinesa logrou ter algum crescimento no segundo trimestre, quando comparado ao segundo trimestre de 2021, quando chegou a crescer 7,9% na base trimestral.  Mesmo considerando que o trimestre comparado foi o 2° do ano de 2020, em meio à pandemia.

Enfim, aparentemente em alguns momentos, a China sempre busca suavizar os dados macroeconômicos que apresenta. Isso tanto para cima, quando os resultados não são tão bons – uma vez que poderiam suscitar alguma agitação social ou por em dúvida a projeção do país como força econômica dominante no tabuleiro geopolítico – quanto para baixo, quando são exageradamente bons, principalmente em relação a exportações, de modo a diminuir a pressão protecionista, junto ao país por seus importadores.

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O mesmo pode-se dizer com os atuais defaults das hipotecas de empreendimento ainda não acabados. Segundo relatório do JPMorgan[1], os preços das residências de 70 cidades aumentaram para 1,3% em junho na base anual, após uma queda de 0,8% em maio do mesmo ano. Comparativamente, os preços de casas novas caíram em 38 cidades em junho (versus 43 cidades em maio) e aumentaram em 31 cidades (versus 25 cidades em maio).

Ainda segundo artigo do JP, nesta semana (11-15 de julho), 15 grandes bancos informaram suas exposições em hipotecas de empreendimentos inacabados, minimizando o receio de uma possível crise sistêmica no setor de ativos imobiliários.

Segundo o estudo, 20% de hipotecas, ou US$ 1,15 trilhão, são referentes a empreendimento inacabados, de um mercado total de 38,8 trilhões dos yuans (US$ 5,7 trilhões). Assumindo que dessas hipotecas que têm como lastro empreendimento inacabados, 50% sofrerão algum tipo de default, então a exposição bancária a essa corrente deverá ser de aproximadamente US$ 575 bilhões (metade de US$ 1,15 trilhão), ocasionando um aumento de um pouco mais de 2% nos níveis de Non-Performing Loans (NPLs), ou inadimplência, dos bancos expostos a essas hipotecas.

Mesmo que a estimativa apresentada no estudo esteja abaixo do esperado, ou seja, talvez uma onda de default ultrapasse os 50%, dificilmente veríamos uma nova crise no setor imobiliário, pelos seguintes motivos e mitigantes:

  1. Aproximadamente 31 cidades estão em parcial ou total lockdown, ou quase 243 milhões de habitantes, com possibilidade de menor renda e crescente tensão social, dado o longo período de isolamento. Dificilmente essas pessoas não serão resgatadas pelo governo jogando a conta nos próprios bancos, que buscarão recuperar suas perdas financeiras via maior repressão financeira;
  2. Ainda assim, visando a tranquilidade a minimização de possíveis tensões sociais advindas dos atrasos no pagamento das hipotecas, o governo central muito provavelmente utilizará ou as empresas estatais (SOEs) e/ou os governos locais para endereçarem essa corrente de default;
  3. O problema da Evergrande, que buscava atender as three red lines ( diretrizes regulatórias financeiras na China introduzidas em agosto de 2020 relacionadas à proporção de dívida em dinheiro, patrimônio e ativos) do governo central implantadas para limitar a alavancagem financeira das incorporadoras, foi muito pior do que o presente episódio de atraso de hipotecas de empreendimento inacabadas, e o governo fez o step in [intervenção] para ajudar os investidores locais, mas não os internacionais.

Enfim, mais uma intempérie no Reino do Meio (Zhōngguó) que talvez tenha se mostrado um pouco exagerada aos olhos ocidentais, ainda mais pelo fato de o país ter uma conta capital do balanço de pagamentos praticamente fechada para capitais especulativos, mesmo que porosa e com alguns esquemas possíveis como o Qualified Domestic Institutional Investor (QDII) e o Qualified Foreign Institutional Investor (QFII).

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Os mecanismos possibilitam investidores domésticos e internacionais investirem em ativos financeiros na China Mailand e em outros países pré-selecionados e parte do esquema estabelecido pelo China Securities Regulatory Commission (CSRC) e State Administration of Foreign Exchange (SAFE).

[1] J.P.Morgan: China: Housing price contraction continued; Escalating mortgage repayment refusals to cloud 2H housing activity recovery (15 july 2022)

Roberto Dumas Damas Roberto Dumas Damas é estrategista-chefe do Voiter e representou o Itaú BBA em Xangai de 2007 a 2011. Em 2017, atuou no banco dos BRICs em Xangai. Dumas é mestre em Economia pela Universidade de Birmingham na Inglaterra, mestre em Economia Chinesa pela Universidade de Fudan (China), além de professor de MBA e pós graduação do Insper e da FIA e professor convidado da China Europe International Business School (CEIBS) e Fudan University (China)

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