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Estará a América Latina nos seus estertores?

A América Latina é pródiga em produzir figuras com talento para aproveitarem-se das frágeis instituições legadas pelo passado colonial da região e, assim, minar a ordem constitucional
Por  Pedro Jobim -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Há décadas, a América Latina vem perdendo relevância como fração da renda mundial. Há apenas quarenta anos, a região representava 12% do PIB global, porcentagem que, em 2020, havia caído quase à metade, segundo dados do FMI, como mostra o gráfico 1 abaixo. Isso significa que, na média deste período, a região cresceu cerca de 1,2% por ano a menos do que a média global.

Gráfico 1

Fonte: FMI

As razões por trás da dificuldade de crescimento e do empobrecimento relativo da região são, há décadas, objeto de intenso debate.

Daron Acemoglu e James Robinson, em seu excelente livro “Why Nations Fail”, apontam a fragilidade das instituições políticas e econômicas dos países da região como responsáveis imediatas por esse atraso.

Essa fragilidade, por sua vez, teria origem nas características da colonização conduzida pelos países Ibéricos, voltada fundamentalmente para a extração de recursos naturais, com utilização de mão de obra escravizada local e/ou africana.

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O modelo teria limitado, segundo os autores, o enriquecimento da região à uma pequena elite – inicialmente, de espanhóis e portugueses e, posteriormente, de oligarcas locais, em detrimento da sociedade como um todo.

O sistema teria ainda dado origem a um ordenamento econômico, político e jurídico que exibiria características como fragilidade do estado de direito, em especial, do direito de propriedade; manutenção de privilégios a determinados grupos da sociedade em detrimento de seu todo; reduzido grau de vinculação e prestação de contas por parte dos políticos à população; elevado grau de patrimonialismo, isto é, utilização da estrutura do estado para a persecução de interesses privados, entre outros mecanismos perversos.

A baixa capacidade de crescimento, a elevada desigualdade econômica e os níveis reduzidos de escolaridade média observados na região teriam emergido como consequências deste ordenamento.

Esse diagnóstico nos parece, de forma geral, bastante correto, muito embora as nuances e diferenças entre os países da região sejam substanciais.

O figurino acima descrito observou-se de forma mais estrita em México, Peru e Bolívia, países onde os recursos minerais eram mais abundantes e nos quais a densidade demográfica das populações indígenas era maior, o que permitiu maior escala na exploração do trabalho forçado pelos conquistadores.

No Chile, a geografia foi um obstáculo ao exercício de um poder central mais amplo. Já os territórios onde Colômbia e Venezuela estão hoje dispunham de menos recursos minerais aparentes, e uma população indígena menos densa do que seus vizinhos andinos, fatores que contribuíram para a região despertar menos atenção dos espanhóis.

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Não coincidentemente, esses países exibem, desde os tempos coloniais até os dias de hoje, um nível de renda per capita maior do que os países andinos – ou exibiam, no caso da Venezuela, até alguns anos atrás, antes de a economia do país entrar em colapso com a ascensão do Chavismo.

Na ordem de atratividade ao conquistador mercantilista, o território da atual Argentina ficava em último lugar dentre as províncias da América espanhola: não havia metais preciosos em quantidade significativa e o clima temperado era pouco adequado ao cultivo de produtos agrícolas tropicais.

Além disso, a população indígena hostil e esparsa não facilitava o estabelecimento das “encomiendas” – glebas de terras concedidas à elite castelhana que conferiam a seu donatário a livre utilização dos recursos humanos encontrados no local.

Esses fatores foram determinantes para que a região fosse quase completamente ignorada pela metrópole até meados do século XVIII.

Ela pôde, assim, experimentar um desenvolvimento mais descentralizado, com menor presença do estado e lastreado na propriedade privada voltada para a pecuária. A Argentina experimentaria crescimento extraordinário, baseado em exportações de carne, lã, couros e trigo, a partir de fins do século XIX até as primeiras décadas do século XX.

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A colonização do Brasil por Portugal teve alguns elementos comuns ao modelo geral de exploração mercantilista descrito acima.

Diferenças importantes em relação ao espanhol seriam a substituição da mão de obra local pelo escravizado africano e o elevado grau de miscigenação observado entre as populações de origem europeia, local e africana – consequência, principalmente, da reduzida população disponível em Portugal para proceder à colonização.

Pode-se argumentar que esse fenômeno contribuiu para a construção de um tecido e identidade nacionais marginalmente mais robustos do que os alcançados pelas ex-colônias espanholas, de forma geral. De todo modo, o elevado grau de patrimonialismo e o controle dos recursos do estado por uma elite – no caso brasileiro, de funcionários, o “estamento burocrático” de Raymundo Faoro – é um traço marcante da história do Brasil e já foi amplamente discutido em artigo anterior.

A despeito do modelo institucional frágil e da herança colonial mercantilista, a América Latina foi capaz de crescer em ritmo bem superior à média global por cerca de um século, entre as décadas de 1870 e 1970, como mostra o gráfico 2 abaixo, construído a partir das estimativas de Angus Maddison, economista que escreveu vários livros sobre a desigualdade de crescimento entre os países ao longo da história.

Sem entrar em detalhes que não caberiam neste artigo, o desempenho positivo da região no período pode ser em grande parte explicado pelos fortes ciclos de crescimento da Argentina, entre 1870 e 1950, encadeado ao do Brasil, entre o pós Guerra e a década de 1970.

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O histórico de desempenho econômico da América Latina, bem como o dos países do sudeste asiático, que, mesmo com instituições de forma geral menos frágeis do que as latino-americanas, só passaram a crescer mais intensamente a partir dos anos 1990, são alguns dos motivos pelos quais as teorias que procuram relacionar instituições e crescimento econômico não eram populares há 40 ou 50 anos atrás.

O que explica, então, a inversão do ciclo econômico da América Latina a partir dos anos 1980? Seriam mesmo o passado mercantilista e a fragilidade institucional os fatores do atraso? Ou a explicação estaria em outra parte?

A resposta está na vulnerabilidade dos modelos de crescimento e das frágeis instituições da região às ideologias de caráter totalitário do século XIX, em especial, o marxismo.

Gráfico 2

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Fonte: Angus Maddison (1820-1950) e FMI (1980)

Argentina e Brasil conseguiram crescer por décadas em função dos baixos níveis originais de endividamento e estoque de capital, relativa juventude de sua população e abundância de mão de obra, vantagens comparativas relevantes em determinados setores, e, especialmente nos últimos estágios de seus respectivos ciclos, expansão fiscal e monetização dos déficits orçamentários do governo.

Embora tais ciclos tenham sido relativamente longos, o ordenamento político e jurídico defeituoso desses países, em que o patrimonialismo se tornou institucionalizado ao longo dos séculos, não permitiram queda significativa na concentração de renda e na desigualdade, paralelamente à enorme diminuição da pobreza observada.

A história nos mostra que a desigualdade é um motor de ressentimentos – e, como nos ensinou Nietzsche, as ideologias totalitárias são “recrutadoras de ressentimentos”.

Embora as ditaduras de fato na região sejam poucas – Cuba e Venezuela – a América Latina foi (ou é) pródiga em produzir figuras políticas carismáticas, com grande talento para, valendo-se de elementos de ideologias totalitárias, baseadas no antagonismo entre opressores e oprimidos, aproveitarem-se das frágeis instituições legadas pelo passado colonial da região e de sua relativamente elevada pobreza, para assim minar a ordem constitucional, aparelhar o estado, e viabilizar sua perpetuação no poder.

Para citar apenas alguns exemplos, podemos mencionar Perón e seus herdeiros políticos, como os Kirchner, na Argentina; e Getúlio Vargas e Lula, no Brasil.

Em alguns casos, como Lula, o casal Kirchner, e Chávez e Maduro (estes últimos, na Venezuela), o aparelhamento do Estado foi acompanhado da espoliação e desvio dos recursos do país, em diferentes intensidades, para o grupo político e/ou familiar dos mandatários.

Na América Latina, a democratização se deu, em geral, a uma altura do processo de formação do Estado em que as instituições – principalmente as garantidoras do Estado de Direito – estavam relativamente pouco consolidadas.

Como destacou Niall Ferguson, muitos acreditam que bastam eleições livres para que um “Estado Democrático de Direito” esteja estabelecido, esquecendo-se de que o sufrágio universal é apenas uma das componentes de um edifício cujo principal pilar é a subordinação de todos – inclusive os mais poderosos – ao ordenamento constitucional.

Francis Fukuyama nos ensina que os países mais bem sucedidos – notadamente, o mundo anglo-saxão – só ampliaram o sufrágio a partir de um estágio de seu desenvolvimento em que o Estado de Direito já estava maduro, o que contribuiu para reduzir as chances de subversão das instituições por figuras como os mencionados populistas sul-americanos, e de reversão do Estado às práticas patrimonialistas.

Isso não quer dizer que esse processo tenha sido assim pensado, na maior parte dos casos. Mas é uma observação empírica importante, e que ajuda a explicar o insucesso da região.

Nos últimos anos, a América Latina vem consolidando um novo mergulho rumo ao populismo socialista.

Mesmo o Chile, exemplo de crescimento e estabilidade na região, não resistiu. O recrutamento de ressentimentos funcionou e o país ingressará em breve no processo de redigir uma nova Constituição – que, como amiúde ocorre em situações semi-revolucionárias como a presente, deve resultar na produção de um texto muito pior do que o atual.

A Argentina está no sexto ano de recessão continua, imersa numa rota de deterioração social e econômica da qual não parece haver retorno. O Peru, após uma eleição apertadíssima e repleta de acusações de fraude, caminha para empossar como presidente um marxista à moda antiga, cuja plataforma de governo envolve nacionalização de empresas, e, também, a redação de uma nova Constituição.

A Colômbia está afogada em vandalismo e greves gerais há meses, após uma frustrada tentativa de reforma tributária pelo Presidente Ivan Duque, que conta com baixíssima popularidade. Na Bolívia, o grupo de Evo Morales, proto-ditador que pilhou o país por décadas, está de volta ao poder. No México, o populista de esquerda Andres Manuel Lopes Obrador gradativamente erode as instituições e reverte as reformas feitas por seus antecessores nas últimas décadas.

E no Brasil, o ex-presidiário Lula, condenado por diversos crimes, na esteira dos quais o país experimentou a pior recessão de sua história, foi trazido de volta ao tabuleiro político pelo Supremo Tribunal Federal, e tem boas chances de vencer a próxima eleição.

Simón Bolívar, em carta a um amigo próximo pouco antes de sua morte, em 1830, escreveu:

“Governei por vinte anos, ao longo dos quais concluí certas verdades: (i) A América (do Sul) é ingovernável; e a única coisa que se pode por lá fazer é emigrar; (2) seus países inevitavelmente cairão nas mãos das massas desenfreadas, e então passarão, de forma quase imperceptível, às mãos de tiranos de todas as raças; (3) depois de devorada por crimes e extinta pela ferocidade, os europeus sequer se interessarão por reconquistá-la; (4) se houver um lugar em que um dia a civilização retornará ao caos primitivo, este lugar seria a América (do Sul), nos dias de seus estertores”.

A precisão do “libertador da América” a respeito da natureza da região impressiona. Nos resta torcer para que Bolívar esteja errado em seu vaticínio, e que o processo de deterioração orgânica que a América Latina vive hoje não seja definitivo.

Infelizmente, no entanto, para dizer o mínimo, o prognóstico geral para os próximos anos não tem nada de alvissareiro.

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Pedro Jobim É sócio-fundador da Legacy Capital. Atua no mercado financeiro desde 2002, tendo sido economista-chefe do banco Itau BBA e da tesouraria do banco Santander. É engenheiro mecânico-aeronáutico formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), mestre em economia pela PUC-Rio e Ph.D em economia pela Universidade de Chicago.

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