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O Talibã brasileiro

Destruir anteparos legais que protegem a sociedade – sobretudo os mais pobres – contra a inflação, o aumento da carga tributária, a estagnação econômica e a pobreza, é manifestação evidente do atraso e da ignorância
Por  Paulo Tafner -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Em março de 2001, o mundo assistiu assombrado e incrédulo à derrubada, no Afeganistão, de estátuas milenares de Buda, construídas no século V.

As estátuas eram gigantescas e esculpidas em pedra. Estavam localizadas em um sítio arqueológico que contemplava diversos santuários budistas.

Trabalho colossal de milhares de trabalhadores e símbolo de uma cultura. Uma das estátuas derrubadas tinha mais de 50 metros de altura, toda feita em pedra esculpida.

No interior das estátuas, havia registros de imagens e de textos milenares. Aquilo que demorou décadas para ser erguido, com esforço concentrado e organizado de milhares de pessoas, foi posto abaixo em menos de um minuto.

Como explicar isso? Como justificar tamanha violência à cultura, à história, ao registro da presença humana, com suas crenças, valores e formas de expressão?

A construção é lenta, muitas vezes dolorosa. Exige esforço, concentração, organização e empenho. A destruição, ao contrário, é ligeira e sorrateira. Em minutos, todo o esforço para erigir é demolido.

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De certa forma, é isso que temos presenciado em nosso país.

Em 2005, eu era coeditor de uma publicação do Ipea intitulada Brasil, o estado de uma nação e formulávamos uma questão: “Por que o Brasil não tem crescido de forma sustentada nos últimos anos?”

Escrevia-se então: “O crescimento econômico nos últimos 20 anos (de então) tem sido bastante modesto. No decênio 1995-2004, a economia brasileira cresceu, em média, 2,4% ao ano. A redução da pobreza se deu de forma ainda mais modesta e quase não andamos na redução da desigualdade”.

Com exceção do suspiro de crescimento da segunda metade da primeira década do século XXI, fruto da combinação de aprimoramentos institucionais realizados na década de 1990 e do acelerado crescimento da economia mundial, o fato é que a segunda década deste mesmo milênio está perdida. Um fiasco.

Olhando retrospectivamente, percebe-se que o aprimoramento institucional brasileiro visando o ordenamento fiscal do país vem de longa data.

Já na segunda metade dos anos 1980, passos importantes foram dados, como a unificação dos orçamentos paralelos, a criação da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), a criação do SIAFI, que permite a visualização e o controle de receitas e despesas da União e que se espalhou para os entes subnacionais, e o fim da “conta movimento” do Banco do Brasil, que permitia ao BB sacar recursos no Banco Central e emprestá-los a setores prioritários, além de financiar déficits públicos.

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Em 1994, após a criação do Fundo Social de Emergência – que posteriormente se transformou em DRU – e a instituição do Plano Real, que, como sabemos, estabilizou a moeda nacional, novos aprimoramentos institucionais foram realizados.

Ainda na segunda metade dos anos 1990, dois grandes avanços foram feitos. O primeira deles foi a renegociação (em condições mais favoráveis do que as de mercado) das dívidas de estados e municípios com o estabelecimento de cláusulas rigorosas de modo a induzir melhor comportamento fiscal dos entes subnacionais.

Isso mudou o quadro de estrutural déficit fiscal de estados e municípios e exigiu dos administradores locais maior empenho para manter o equilíbrio fiscal.

A segunda e crucial medida foi a aprovação da Lei Complementar 101 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que representou um marco crucial no processo de institucionalização de práticas fiscais mais sólidas.

Buscava-se estabelecer uma estrutura mais abrangente e sólida para a política fiscal a ser seguida por todos os níveis governamentais, aumentar a transparência e fortalecer o compromisso com níveis de dívida sustentáveis.

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A lei determinava ademais, limites para gastos com pessoal, impondo sanções caso esses limites fossem ultrapassados.

Esses compromissos foram seguidos nos primeiros anos da década inicial do novo milênio. Entretanto, o acelerado crescimento da economia brasileira e preferências políticas foram lentamente minando esses compromissos – e a busca de superávits primários foi sendo flexibilizada, com gastos crescentes por parte dos governos.

O Talibã brasileiro mais uma vez mostrava sua cara. A expansão desmesurada da despesa e o comportamento irresponsável do governo central de incentivar o endividamento dos entes subnacionais levou à catástrofe fiscal que é de amplo domínio público e levou o país à sua maior crise econômica da histórica republicana.

Mesmo com todo esse esforço institucional, a sanha gastadora fez com que a carga tributária se elevasse de aproximadamente 24% do PIB, em 1994, para algo como 32% dessa mesma grandeza.

Era necessário impor limites à gastança, pois, de outra forma, a alternativa que restaria seria o aumento da já altíssima carga tributária.

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Surgiu então, em 2016, a PEC 241. Uma vez aprovada, transformou-se na EC 95 ou Emenda do teto de gastos, impondo limites à ampliação real das despesas.

Em síntese, o “teto dos gastos” exige que a sociedade tenha comportamento adulto: quer gastar mais em alguma coisa? Então reduza despesa em outra. Faça escolhas, mas respeite o limite!

O Talibã brasileiro quer destruir esse arcabouço institucional desde sua aprovação. Falsos argumentos “em prol da saúde e da educação”, “em defesa” dos mais pobres, ou ainda “pela retomada do crescimento” têm sido utilizados. Pura balela.

A regra da PEC do teto dos gastos é mais generosa para saúde e educação do que a regra anteriormente em vigor que indexava a despesa a um percentual da arrecadação. Sobretudo pós-pandemia, o gasto seria muito menor do que será pela aplicação da regra do teto de gastos.

O teto de gastos é atacado por diferentes setores da sociedade – em especial, categorias de elite do serviço público –, com ramificações fortes no Judiciário (inclusive na Suprema Corte, assunto sobre o qual escreverei em breve) e nos “órgãos de controle”.

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Mas encontra respaldo em parte do Legislativo – sobretudo em ano eleitoral –, em certos grupos empresariais em algumas universidades públicas e nos economistas criacionistas, aqueles que acreditam na geração espontânea de riqueza.

Destruir a enorme edificação fiscal, construída por vários governos e que tanto custou à sociedade brasileira, é tarefa ardilosamente construída.

Destruir anteparos legais que protegem a sociedade – sobretudo os mais pobres – contra a inflação, o aumento da carga tributária, a estagnação econômica e a pobreza, é manifestação evidente do atraso e da ignorância.

Cuidemo-nos todos.

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Paulo Tafner É economista, doutor em ciência política e diretor-presidente do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (Imds). Especialista em previdência, publicou diversos livros, entre eles, "Reforma da previdência: por que o Brasil não pode esperar?", escrito em conjunto com Pedro Nery

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