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Por Alexandre Sorensen*
Sete artigos, vinte e sete emendas e mais de duzentos e trinta anos em vigor. Essas são as estatísticas básicas da primeira e única Constituição dos EUA.
Duzentos e cinquenta artigos, cento e oito emendas (e contando), menos de trinta e três anos em vigor e já com o seu futuro em xeque. Esses são os dados mais recentes das sete Constituições oficiais que o Brasil já teve.
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Há quem considere que essas diferenças explicam a instabilidade jurídica e política no Brasil, mas não é bem assim. Assim como o termômetro não é responsável pela febre, esses dados são apenas o efeito numérico aparente de um problema mais profundo, que examinarei a seguir.
Primeiro, é imprescindível compreender por que esses textos são tão diferentes em extensão. Para um aficionado do Direito Constitucional, a resposta possivelmente será a de que se tratam de Cartas Magnas de gerações diferentes, em que a dos EUA é um exemplo de Carta de Primeira Geração, que trata apenas dos direitos à vida, liberdade e propriedade, enquanto a Constituição Cidadã de 1988 é uma Carta que envolve os “Direitos de Terceira Geração”, englobando os mais variados temas em complemento aos anteriores, relacionados com valores “sociais, econômicos e culturais” (segunda geração) e de “fraternidade ou solidariedade” (de terceira geração). Novamente, isso não explica o problema. O cerne da questão é o seguinte: para que foi criada originalmente a Lei [1]?
Já em 1850, Bastiat nos dava a mais direta e completa reflexão sobre este tema, observando que “se cada homem tem o direito de defender, mesmo por meio da orça, sua Pessoa, sua Liberdade, sua Propriedade, muitos homens têm o direito de concertar-se, de entender-se, de organizar uma Força comum para prover regularmente a essa defesa.” [2]. Dado que o poder coletivo é, por princípio, a união coordenada dos poderes individuais, a consequência é a de que ele não poderia ter fins diversos dos poderes individuais e, menos ainda, poderia atentar contra estes mesmos direitos que, somados, o originaram.
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Compreendida a origem da Lei, o que ocorre em seguida é a perversão da sua função original: ao longo dos últimos séculos, os pensadores passaram a entendê-la não apenas como uma forma organizada de garantia dos direitos de vida, liberdade e propriedade espelhados nos poderes individuais, mas como uma ferramenta para direcionar os destinos da humanidade. Esse pensamento prevê que o legislador esclarecido poderá, através dela, definir os comportamentos, crenças e valores morais da sociedade da forma que melhor entender, motivado por uma percepção de avaliar a humanidade “de cima”, de forma isenta, em uma posição quase divina e sem considerar a hipótese da própria falibilidade, semelhante à da “suprema beatitude do entendimento” de Jacob Burckhardt[3].
Por meio dessa perversão, potenciais legisladores passam a tentar impor, através dela, valores adicionais aos dos princípios originais. Tenta-se pela Lei aplicar à sociedade valores de solidariedade, fraternidade e filantropia coletivos que são artificiais, pois impõe a todos valores que ocorreriam naturalmente em parte dos indivíduos, mas não necessariamente em todos. Logo, para incluir esses valores adicionais na Lei, ferem-se os valores motivadores da própria existência da Lei, ou seja, a vida, liberdade e propriedade, já que, para sustentar os novos “direitos” (um subsídio, por exemplo), recorre-se ao espólio legalizado (apropriação forçada) sob a forma de tributos. A partir daí, para promover a transferência de propriedade entre diferentes grupos, a Lei é pervertida de sua função primária, pois aplica contra os indivíduos poderes que esses não podem usar uns contra os outros sem que incorram em crime.
Com o aumento dos grupos de pressão política (sindicatos, associações, indústrias) etc., o que houve nas décadas seguintes foi a explosão desse espólio legalizado, em que cada um desses grupos não quer mais acabar com o espólio que o atinge, mas sim utilizar a força da Lei para obter mais espólios dos demais membros da sociedade, gerando uma situação em que todos querem se beneficiar à custa de todos.
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A Constituição Americana é sólida pois se manteve relativamente fiel aos princípios que fundaram aquele país, os mesmos que motivaram a criação da Lei (a vida, a liberdade e a propriedade). Enquanto isso, a Constituição Brasileira de 1988 nasceu como descendente direta das perversões que a Lei sofreu nos séculos anteriores, sendo composta principalmente de “direitos” que extrapolam os direitos originais/da primeira geração, fruto de grupos de pressão política existentes na época. Trata-se de uma Carta Magna que cita inúmeros direitos, mas pouquíssimos deveres, esquecendo-se de que todo direito implica na obrigação de outrem de garanti-lo. É claro, apontar direitos para os beneficiários é fácil: o difícil é apontar os deveres dos que serão espoliados para sustentar os primeiros. É a materialização da crença de que, fechando os olhos, o problema de que não existe almoço grátis simplesmente desaparecerá. Assim, para que tenhamos uma Carta Magna tão sólida e estável quanto a americana, é preciso que ela se restrinja a espelhar de forma coletiva os direitos inerentes a cada indivíduo, sem afrontá-los e renunciando à pretensa ambição de controlar os destinos e as vontades do povo brasileiro. Disso é o próprio povo que cuidará.
No caso brasileiro, antes de pensar na convocação de uma Constituinte, é preciso avaliar se a sociedade e os legisladores brasileiros têm a convicção de recuperar o espírito original da Lei, garantir os direitos básicos dos indivíduos sem se contrapor a eles, ou se a propensão é a de cederem a grupos de pressão em prol do espólio legalizado. Se assim fosse, promulgar uma nova Carta seria inócuo, pois centenas de emendas recolocariam o espólio legalizado e generalizado no texto constitucional.
Em um país em que se mede a eficiência dos legisladores pela quantidade de novas leis apresentadas ao Parlamento, e onde grupos de pressão são financiadores de pautas políticas e têm verdadeiras bancadas eleitas, parece evidente que o cenário de uma nova Constituição restrita aos direitos originários da lei está muito, muito distante.
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[1]: A Lei aqui, assim como na obra de Bastiat, com inicial maiúscula, trata-se não apenas da Constituição ou das normas e regulações escritas, mas sim de todo o aparato coletivo utilizado para a sua imposição. Trata-se da Força legitimada do ente estatal.
[2]: BASTIAT, Frédéric. A Lei, LVM Editora, página 42, São Paulo, 2019.
[3]: Conceito trazido por Jacob Burckhardt no livro “Reflexões Sobre a História”, em que o autor descreve uma visão sobre os eventos ocorridos na humanidade a partir do posicionamento de um observador externo, que contempla o mundo e a humanidade como se não fosse parte deles.
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*Alexandre Sorensen é formado em Ciências Contábeis pela Universidade de São Paulo, atua como Head de Finanças e Operações e como consultor para finanças corporativas e é associado ao IFL-SP.