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Como Tony Stark no primeiro “Vingadores”, não são poucos os habitantes de redes sociais que se tornam especialistas em assuntos diversos da noite para o dia.
Ainda que não em energia termonuclear como Stark, é certo que, em um conflito militar, você encontrará um número pouco habitual de cientistas políticos, ou pretensos, lhe explicando a crise.
O mesmo ocorre em meio a uma pandemia, quando há um surto de novos virologistas, ou qualquer outro assunto.
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É natural que em um mundo interconectado e com fácil acesso à informação e leitura, muitas pessoas se sintam seguras para dialogar, e às vezes, palestrar sobre temas diversos aprendidos em dois ou três artigos na Wikipedia.
Para mostrar que entenderam, muitos costumam concluir seu raciocínio como “É complexo”. E é nessa vibe que a invasão de um país soberano por outro se torna uma questão complexa.
Dentre tantos assuntos, um tem chamado a atenção.
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Há, por parte da imprensa global, uma cobertura razoável sobre os oligarcas russos, um grupo de bilionários cujo poder e influência está intimamente ligado ao governo de Putin.
Na mesma toada, há aqueles que rebatem dizendo tratar-se de “preconceito”. Afinal, porque Jeff Bezos seria empreendedor e Roman Abramovich um oligarca?
Ao contrário do que tentam fazer parecer, este não é um tema complexo. Pelo contrário, ele é relativamente simples.
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Roman Abramovich e Boris Berezovsky, dois dos primeiros oligarcas russos, foram literalmente os responsáveis por indicar um certo Vladimir Putin a Boris Yeltsin ainda em 1998.
Ambos também foram próximos, em níveis que faria Temer e Joesley Batista terem uma crise na amizade, do próprio Yelstin.
A origem da fortuna de Abramovich e Berezovsky está intimamente ligada à maneira como a dupla conseguiu manipular as ações do estado russo após o fim da União Soviética.
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A primeira empreitada de ambos, a Sibneft, era uma empresa estatal de petróleo. Acreditava-se que ela valia algo como US$ 5 bilhões quando o Estado russo a colocou a leilão por US$ 300 milhões.
Este é apenas um entre dezenas de casos que compõem a oligarquia russa. É, em termos práticos, impossível distinguir onde começa o Estado e onde começa o setor privado russo.
São pessoas cuja origem é similar: ex-agentes da KGB e ex-militares, graduados nas mesmas salas de aula que os políticos do país e cuja habilidade em manobrar a ação do governo lhes garantiu bilhões de dólares.
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Essa história, porém, mudou de rumo a partir de 2003.
Foi neste ano que Mikhail Khodorkovsky, o responsável por criar o primeiro banco comercial da Rússia e então homem mais rico do país, com US$ 15 bilhões em patrimônio (adquirido por meio das privatizações fraudadas), enfrentou Vladimir Putin, ou melhor, a lei russa.
Khodorkovsky foi julgado por nove crimes contra o Estado, incluindo fraude e roubo de propriedade. Condenado à prisão, seus bens foram incorporados pelo Estado russo, marcando o início de uma nova fase para os oligarcas locais.
Como conta Bill Browder, um ex-banqueiro que já operou na Rússia (além de ser sócio do brasileiro Edmond Safra), desde 2003 a distinção entre o que é propriedade dos oligarcas no papel e o que é do Estado é praticamente nula, da mesma forma que a distinção entre aquilo que é do Estado e o que pertence a Vladimir Putin também inexiste.
Browder alega que, por meio de amizades do tipo, Putin tenha amealhado um patrimônio de US$ 200 bilhões.
Verdade ou não (ainda que o banqueiro tenha deposto no Congresso americano, não há provas materiais), essa questão tem motivado países ocidentais a congelar ou confiscar propriedades dos bilionários russos.
E essa é uma questão menos importante do que parece: apesar de dinheiro e poder poderem ser complementares, o poder sempre irá prevalecer – como Putin mostrou em 2003.
Imagino que você esteja pensando em alguns paralelos neste momento. É natural que isso aconteça. É normal que você pense em inúmeros casos brasileiros em que políticos e empresários pouco se distinguem.
Tivemos por aqui esquemas de corrupção monumentais envolvendo a pouca distinção entre políticos e empresários.
Em boa medida, essa comparação se fundamenta naquilo que os economistas chamam de “instituições extrativistas”.
Em suma, países desenvolvem dois tipos de instituições (como Judiciário, polícia, Congresso, empresas, famílias etc.): as extrativistas, cujo objetivo é extrair o máximo de renda possível da população para a elite que controla essas instituições, e as inclusivas, em que as elites têm dificuldade em manipular as instituições.
A América Latina, como a Rússia, possui instituições do primeiro tipo. São instituições herdadas da nossa colonização, e que poucos países conseguiram mudar (Chile e Uruguai talvez sejam os exemplos mais próximos de mudança institucional em nossa região).
É por isso que, vivendo em um país acostumado onde manda quem tem grana, podemos nos sentir compelidos a comparar nosso caso ao russo.
Mas, como dois cientistas políticos poloneses recentemente traduziram em uma palavra, essa é uma forma de “westsplaning”, ou seja, uma tentativa de o Ocidente ensinar ao resto do mundo sobre o que ocorre no Leste europeu e se colocar no centro da história.
Porém, existe um termo diferente de “oligarca” que se enquadra perfeitamente por aqui: os “crony capitalists”, aqueles empresários que vivem de influenciar políticos e políticas públicas para obter vantagens.
Eles não mandam no Estado, não decidem presidentes (apesar de muitos acharem que sim), mas manipulam a redação de pequenas leis e obtém benefícios com isso.
Essa é uma prática comum em diversos países, graças ao chamado “Paradoxo de Tullock”.
Imagine, por exemplo, que o Congresso decida votar uma lei que dá R$ 100 milhões para um grupo de dez brasileiros. Isso custaria R$ 1 para cada trabalhador do país, uma merreca com a qual não valeria a pena se ocupar, certo? O custo de protestar contra essa lei não compensaria para os milhões de lesados por ela.
Por outro lado, esse grupo de 10 brasileiros poderia investir R$ 1 milhão cada um para garantir que irão obter os R$ 10 milhões cada – e ainda sair no lucro!
Esse é, em suma, o ponto central do lobby, uma prática comum que une desde a Odebrecht até a Amazon, passando pela Camargo Correa e a SpaceX.
Das empresas mais íntimas do governo até aquelas cuja função parece distante e empreendedora, esse é um jogo político comum de busca por influência.
Se ele não for bem definido e regulamentado, ele é um escárnio. Mas ainda assim passa muito longe das oligarquias russas.
No fundo, a busca por nos inserirmos em uma discussão distante afasta as discussões que poderiam ser úteis utilizando o contexto local.
Entendermos de onde vem os nossos problemas sem tergiversar sobre paralelos é, e sempre será, a única maneira real de mudar.