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A transição energética e o financiamento do autoritarismo

Em meio a sanções à Rússia, o mundo busca novos fornecedores para commodities relevantes – e os olhos se voltam para novos autoritários em busca de financiamento, como a Venezuela.
Por  Felippe Hermes -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

“Terra Prometida” estreou nos cinemas em 2012, contando com a participação de Matt Damon e John Krasinski para narrar um drama pautado na indústria de petróleo e gás.

No filme, Damon representa uma petroleira cujo objetivo é comprar direitos de exploração e produção nas terras de algumas famílias de uma pequena cidade do interior americano.

São quase 2 horas de um filme que, na prática, é um enorme “alerta” (ou propaganda) sobre os danos causados pela indústria do petróleo. Ironicamente, a obra foi financiada por um fundo do governo dos Emirados Árabes, um dos maiores produtores de petróleo do mundo.

O filme busca colocar em xeque a técnica de fracking, um método de extração de petróleo que foi crucial para um enorme projeto dos EUA: a autossuficiência energética em petróleo.

O plano, desenvolvido nas gestões de George W. Bush e Barack Obama, garantiu não apenas segurança energética ao país, mas também estabilidade global. Afinal, como a Europa de hoje não nos deixa mentir, financiar países com regimes autoritários para em busca de energia é um enorme problema. E, historicamente, essa foi uma especialidade americana.

Por menor que seja a surpresa, esse é um dos objetivos dos EUA em relação ao futuro pós-guerra na Ucrânia.

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Ao longo desta semana, o governo americano iniciou conversas com a ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela para suprir a lacuna deixada pelo fim das importações de petróleo russo.

Tal aposta, ainda que esteja meramente nas tratativas iniciais, demonstra boa parte dos erros cometidos pelos próprios EUA, além da Europa, na busca por uma transição energética para uma matriz menos poluente, parte da famosa “agenda ESG”.

Biden, em especial, deu uma guinada com relação a produção interna nos EUA, já sob efeito da mudança de tom que o filme mencionado no começo deste texto ajudou a gerar.

Desde 2020, os EUA suspenderam importantes projetos envolvendo a indústria de óleo e gás, como a ampliação do oleoduto Keystone, que levaria ao menos 800 mil barris de petróleo do Canadá para estados americanos. Restrições de produção em áreas federais também foram ampliadas.

Na prática, a pressão por mudanças drásticas na matriz energética americana levou à redução na produção de petróleo no país, o que colaborou para tornar os EUA novamente um país dependente de importações.

O resultado é uma queda de 2 milhões de barris de petróleo diários na produção em solo americano, de 14 para 12 milhões de barris. Uma queda autoimposta e que obriga o país a buscar outros fornecedores, como a Venezuela.

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Pressionados por grupos progressistas e ambientalistas, governos ao redor do mundo têm, por ironia do destino, colaborado para ajudar regimes totalitários.

O erro se estende além dos EUA. Ele pode ser visto também na Alemanha que, em 2010, decidiu fechar suas usinas nucleares (um método de produção que emite zero gases ligados ao aquecimento global).

Este é um dos pontos a serem revistos hoje, em meio ao conflito entre a Rússia, o segundo maior produtor mundial de petróleo, e a Ucrânia.

Tal questão é relativamente simples de entender. A aposta em energias renováveis, como eólica e solar, embute um risco conhecido. Ambas são fontes intermitentes, ou seja, sua produção não ocorre com regularidade.

À noite, a produção de energia solar vai a zero. Em determinadas estações do ano, os ventos diminuem. Simples assim. Como resolver? Incluindo no grid elétrico fontes seguras, ou seja, que podem ser acionadas rapidamente, como usinas nucleares ou termelétricas movidas a gás. No caso da Alemanha, a escolha foi pela segunda opção.

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Após o desastre em Fukushima, a usina nuclear japonesa atingida por um terremoto e um tsunami, os alemães se tornaram intransigentes com a manutenção de usinas do tipo. O país chegou ao ponto de determinar o fechamento de todas as usinas até o final de 2022, enquanto as térmicas a carvão poderão funcionar até 2030.

No outro extremo, a China prevê inaugurar uma nova usina nuclear a cada 36 dias, em média, nos próximos 15 anos. Não é coincidência, portanto, que Xi Jinping tenha mencionado que “a segurança energética não pode ficar em segundo plano por metas envolvendo mudanças climáticas”.

Essa é apenas uma das questões que, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), devem ser revistas se a Europa quiser reduzir a dependência de gás russo em até 80% em um ano.

Planejar o mundo após a guerra atual tem sido um desafio imenso. Como mencionei neste texto da última semana, a Rússia tem sofrido um “cancelamento” jamais visto. E isto implica tirar da economia global um dos países mais relevantes do mundo quando o assunto é energia e commodities. O custo, claro, será alto, e para ambos os lados.

É possível que o Ocidente veja um aumento ainda maior da inflação, que já preocupava em 2021, e agora se tornou endêmica.

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Mas, de volta ao problema energético, o que podemos esperar é, como relata a AIE em seu relatório, uma aceleração da agenda de energias renováveis.

A agência recomenda que a burocracia para aprovar novos parques eólicos e solares seja acelerado. Além disso, pede que o apoio às fontes “seguras” seja revisto.

Não há, como muitos gostariam, qualquer perspectiva atual de rever este cenário de transição energética, focando em ambas as fontes.

Mas a questão, claro, não se restringe à energia. Commodities relevantes para essa transição, como o níquel, também têm a Rússia como maior produtor global.

O embargo americano às exportações russas pode, portanto, gerar uma mudança a longo prazo, mas tal transformação dificilmente passará por uma menor dependência de países com regimes autoritários, como a velocidade com que os olhares mudaram para a Venezuela deixa bem claro.

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Com raras exceções, como o Canadá ou a Noruega, países relevantes na produção de commodities se destacam pelo autoritarismo de seus governos. E o motivo para isso também não é complexo.

Nações com grandes reservas minerais costumam desenvolver, sem trocadilhos, instituições extrativistas, ou seja, aquelas em que o governo e a elite local buscam extrair renda da população de forma geral.

Isso ocorre pois setores ligados ao agro e a mineração costumam ser concentradores de riqueza, cujos direitos cabem ao governo conceder.

Nesse cenário, com os países ricos buscando diversificar seus fornecedores, o Brasil pode acabar ganhando.

Ainda que também tenhamos instituições extrativistas, corrupção elevada no meio político e políticas protecionistas que extraem renda da população em favor da indústria nacional, temos uma democracia relativamente estável há 30 anos.

O potencial brasileiro para lucrar com um novo boom de commodities não é algo a ser desprezado. Ainda que não sejamos grandes produtores das commodities em alta, como trigo, petróleo e níquel, é possível que essas altas de preços se estendam para outros recursos minerais e agrícolas.

Com tal situação, é possível que o dólar recue com o aumento de exportações brasileiras. A grande questão, porém, é saber se isso será o suficiente para amenizar a inflação por aqui. Mas esse é um problema no qual, definitivamente, não estamos sozinhos.

Felippe Hermes Felippe Hermes é jornalista e co-fundador do Spotniks.com

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