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A ilusão do voto certo

Ela está presente em todo ciclo eleitoral: a ideia de que basta votar nas pessoas certas dessa vez. Na prática, porém, trata-se de uma ilusão. O poder não depende de indivíduos, mas de instituições
Por  Felippe Hermes -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

“Quando fazemos planos para a posteridade, convém lembrar que virtudes não são hereditárias” – Thomas Paine

Poucos filósofos influenciaram tanto o mundo moderno quanto o inglês Thomas Paine.

Nascido no Reino Unido, Paine se tornou famoso pela enorme contribuição que deu à Independência dos Estados Unidos e à Revolução Francesa.

Seu panfleto, chamado de “Senso Comum”, trazia ideias inovadoras sobre liberdade e ideias anti-absolutistas.

Estima-se que ao menos metade dos colonos americanos tenham tido acesso a seus escritos, um feito ainda mais impressionante dada a taxa de pessoas alfabetizadas em 1776 nos EUA.

No caso francês, Paine foi autor do panfleto “Direitos do Homem”, uma obra que condensa o pensamento iluminista da época.

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Por essas e outras razões, Paine é considerado um dos pais fundadores dos Estados Unidos.

Sua contribuição ao que os EUA viriam a se tornar está condensada no início deste texto, em uma de suas mais famosas citações.

Toda lógica da independência americana se pautou pela ideia de que planejar o futuro é ser amplo nos seus objetivos, e não detalhista.

Com mais de dois séculos de existência, a Constituição Americana ainda possui sete artigos e 27 emendas.

No Brasil, onde a constituição atual vigora há 34 anos, são 245 artigos e 111 emendas.

Tamanha distinção pode ser encontrada no cotidiano da sociedade brasileira.

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Somos, em essência, um país desconfiado.

Por aqui, acreditamos na ideia de que as coisas devem estar descritas em lei e que confiar nos outros é algo “complicado”. O resultado, claro, é um país essencialmente cartorial.

Da abertura de uma empresa a transações cotidianas, tudo passa por registros e burocracias infindáveis.

Temos 34 mil leis regulando a vida dos brasileiros, além de 790 mil normas vigentes – desde 1988, já editamos ao menos 5 milhões de normas.

Na prática, temos todo nosso ordenamento descrito nos mínimos detalhes. E, como não poderia deixar de ser, uma ordem social não funcional.

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Quando falamos em desafios da sociedade brasileira, porém, questões como produtividade, demografia e segurança jurídica costumam ficar de lado.

Por aqui, ainda temos o costume de resumir nossos problemas à consequência: a corrupção. Mas esse é um termo genérico para um problema maior, as instituições extrativistas.

Veja, não é como se a corrupção não fosse um problema em si. É evidente que desviar dinheiro público ou favorecer pessoas e empresas são problemas graves, cujas consequências são difíceis até mesmo de medir (algumas estimativas falam em um custo de R$ 160 bilhões ao ano)

São inúmeras as vítimas indiretas da corrupção. Milhares de pessoas perdem a vida todos os anos pois os recursos de um hospital ou posto de saúde foram desviados para um contrato com empreiteiras amigas.

São gerações de crianças que crescem na pobreza pois os recursos públicos são alocados não de acordo com a necessidade, mas sim de acordo com o lucro do político que carimba a verba.

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O grande problema, porém, está na falsa sensação de que “basta votarmos corretamente”.

Além de transferir o ônus para o eleitor, preso em um sistema que incentiva a corrupção, criamos a sensação de que tudo depende de termos “as pessoas certas” nos cargos decisórios.

Quando Thomas Paine descreveu a ideia da Constituição americana, ele quis dizer claramente que os planos, e a própria Constituição, deveriam ser à prova de pessoas sem virtudes.

Um país é tão ou mais desenvolvido de acordo com a capacidade que possui de sobreviver a políticos ruins.

E isso ocorre porque as instituições e os incentivos aos quais estes políticos estão submetidos importam mais do que os políticos em si.

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Temos um governo estruturado de forma centralizada, com poder demais para distribuir privilégios e benefícios.

Esse poder, como mostram os economistas James Buchanan e Gordon Tullock, são a origem da corrupção.

Se uma empresa pode gastar R$ 1 para obter benefícios, os incentivos para agir assim são bastante elevados.

Claro, a chance de punição conta. Mas um Estado que tem regra pra tudo e em que a suprema corte julga roubo famélico não terá tempo para punir esquemas do tipo.

A grande questão, como mostram os pais da “teoria da escolha pública”, está na capacidade de o governo de distribuir privilégios.

Enquanto o governo brasileiro tiver o poder de, em Brasília, definir verba para escolas no Maranhão ou Rio Grande do Sul, o problema permanecerá.

Trata-se de uma questão lógica.

Os recursos são concentrados em Brasília, tornando muito mais fácil corromper sua distribuição. Se, para influenciar uma licitação, eu preciso corromper um indivíduo, e não 20, 30 ou 50, a questão fica mais fácil.

Quanto mais longe do indivíduo está o poder, mais suscetível à corrupção está esse poder.

A forma como o governo brasileiro se organiza, porém, não é a única razão para a corrupção.

Seu inchaço e complexidade também contribuem. Quanto mais difíceis e complicadas forem as regras do jogo, maior a probabilidade de se buscar um atalho.

É o famoso “criar dificuldades para vender facilidades”.

E, no fundo, tudo isso deveria ser bastante claro, evitando que o eleitor se iluda com a ideia de que o sistema será mudado com um único indivíduo à prova de corrupção.

Por sorte, o sistema não depende de uma única pessoa (e por contribuições de pessoas como Thomas Paine no combate ao absolutismo).

O poder está espalhado, ainda que em um grupo menor do que deveria.

Isso aumenta a responsabilidade sobre quem eleger ao Congresso também. Mas não deve servir para iludir sobre mudanças pautadas em pessoas.

É estatisticamente improvável que todo mundo decida “votar certo”, seja porque jamais concordamos sobre o que é o “certo”, ou porque as regras favorecem a continuidade.

Mas é certo se empenhar em mudar as instituições e a organização do Estado e apoiar mudanças que levem à maior descentralização tende a um resultado positivo.

Independentemente de quem for eleito em 2022, seja para qual cargo for, a corrupção não irá acabar. Mas é possível buscar por nomes que colaborem e se esforcem para corrigir as instituições.

Se conseguirmos superar esses desafios, reduzindo o poder do Estado de distribuir privilégios e aumentando a responsabilidade individual (sem, claro, abandonar qualquer indivíduo à própria sorte), nos tornaremos inevitavelmente um país mais rico, no qual nossos políticos não terão o direito de definir nossos hábitos de consumo ou a forma como vivemos nossas vidas.

O desafio que se coloca de forma contínua, e não apenas em períodos eleitorais, é o de apoiar mudanças que reduzam a importância da pessoa que você elege e dos que forem sucedê-lo. Afinal, “quando fazemos planos para o futuro, convém lembrar que virtudes não são hereditárias”.

Ou, em outras palavras: quando apoiar uma mudança política, pare e pense em como seria sua reação se ela viesse exatamente igual, mas feita pelo seu adversário político.

Felippe Hermes Felippe Hermes é jornalista e co-fundador do Spotniks.com

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