A Lei de Liberdade Econômica, as “Segregated Portfolio Companies” e a CVM

No meio do mês de abril, acabou o período de recebimento pela CVM de comentários à minuta da norma que vai regulamentar a constituição e o funcionamento dos fundos de investimento no Brasil, no âmbito do Edital de Audiência Pública SDM nº 08/2020.O objetivo desta nova norma é modernizar o arcabouço regulatório dos fundos de […]

Ronaldo Ishikawa

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(Divulgação CVM)
(Divulgação CVM)

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No meio do mês de abril, acabou o período de recebimento pela CVM de comentários à minuta da norma que vai regulamentar a constituição e o funcionamento dos fundos de investimento no Brasil, no âmbito do Edital de Audiência Pública SDM nº 08/2020.

O objetivo desta nova norma é modernizar o arcabouço regulatório dos fundos de investimento brasileiros, adequando-os às inovações introduzidas pela Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019 (“Lei da Liberdade Econômica”), além de buscar uma maior convergência entre as diferentes regras que tratam dos diversos tipos de fundos de investimento existentes no país.

Entre as novidades trazidas pela Lei de Liberdade Econômica está a possibilidade de estruturação de fundos de investimento com classes de cotas distintas, com a constituição de patrimônios segregados entre as diferentes classes, respondendo cada patrimônio exclusivamente pelo conjunto de deveres e obrigações atinentes à respectiva classe de cotas.

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Esse instrumento de segregação não é novo fora do Brasil. Em outros países, o instituto é amplamente utilizado sob a denominação de segregated portfolio companies (SPC), sendo que o grau de segregação entre ativos e passivos (ring fence) varia de uma jurisdição para outra.

Essa inovação, se bem implementada, representa uma importante evolução para o mercado de fundos de investimento no Brasil, em especial para o segmento de fundos estruturados (considerando o universo dos FIP, dos FIDC e dos FII), que observou um crescimento expressivo nos últimos anos, atingindo a marca de R$ 730 bilhões ao final de 2020, em termos de patrimônio líquido.

Na prática, sob uma perspectiva mais superficial, a segregação patrimonial entre diferentes classes de cotas permite aos fundos de investimento uma economia em relação aos custos globais de administração e manutenção dos fundos, havendo ganho de eficiência, por exemplo, nos custos atinentes ao registro do fundo perante a CVM, bem como nas despesas com contabilidade e auditoria de suas demonstrações financeiras.

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Já em termos de produtos, e sob uma perspectiva mais aprofundada, a segregação patrimonial de diferentes classe de cotas permite que administradores e gestores utilizem o fundo como uma “plataforma” de investimentos, na qual se possa estruturar, dentro de um mesmo fundo, diversos investimentos que se encontrem em diferentes fases de maturação ou com diversos perfis de risco.

Para ilustrar o cenário acima, imagine um fundo de investimento imobiliário que se proponha a desenvolver determinados empreendimentos imobiliários para a posterior obtenção de renda advinda de aluguéis.

Com a possibilidade de emissão de diferentes classes de cotas, admite-se que, durante a fase de desenvolvimento (que compreende a aprovação de projetos, desenvolvimento, construção, locação, etc.) os investidores das Cotas Classe A corram os riscos relativos aos Empreendimentos A, os investidores das Cotas Classe B corram os riscos relativos aos Empreendimentos B, e assim sucessivamente.

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No momento em que os ativos já estejam performados, e gerando renda de aluguel, seria possível realizar a conversão das Cotas Classe B em Cotas Classe A, observada determinada relação de troca, unificando-as em uma única classe de cotas, propiciando-se, assim, uma maior liquidez a todos os cotistas do fundo em questão.

Outra forma de se propor a utilização de diferentes classes de cotas é a possibilidade de investimento, pelo fundo, em um único empreendimento imobiliário, com diferentes níveis de risco alocado entre as respectivas classes de cotas.

A título exemplificativo, as Cotas Classe A poderiam ter um perfil mais moderado, em que os investimentos no empreendimento sejam realizados 100% com capital dos Cotistas Classe A (equity), ao passo que as Cotas Classe B poderiam ter um perfil mais agressivo, em que os investimentos no empreendimento sejam realizados parte com capital dos Cotistas Classe B (equity) e parte com a obtenção de alavancagem ou financiamento (leverage), com diferentes taxas de retorno em caso de sucesso do empreendimento.

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Voltando à Audiência Pública SDM nº 08/2020, a CVM, de forma bastante positiva, procurou encarregar aos administradores e gestores, quando da elaboração do regulamento, a definição quanto à forma de segregação de ativos e passivos e à alocação de despesas entre às respectivas classes, com especial ênfase a que se evite uma indevida transferência de riquezas (e, a contrario sensu, de riscos) entre as diferentes classes de cotas de um mesmo fundo.

Por outro lado, ao tratar da insolvência dos fundos de investimento, de acordo com o art. 1.368-E introduzido pela Lei de Liberdade Econômica, a CVM acabou por não considerar, nas hipóteses de decretação de insolvência (art. 105, inciso “iv” da Resolução proposta pela CVM), a possibilidade de eventuais situações específicas envolverem apenas uma classe de cotas.

Como resultado, a decretação de insolvência contaminaria o fundo como um todo, mesmo quando os problemas estejam vinculados somente a uma determinada classe de cotas.

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Sob uma perspectiva mais macro, esse ponto específico da minuta de norma posta à audiência pública pela CVM reflete talvez a maior dificuldade em se estabelecer segregação patrimonial entre diferentes classes de cotas:

(i) em que medida as diferentes classes de cotas “compartilham” os custos e despesas globais de administração e manutenção;

e (ii) em que medida a segregação é realizada de forma plena e absoluta (ring fence), sem que uma classe de cotas ou os ativos a ela vinculados possa impactar negativamente outra classe; de modo a que se atinja um ponto ótimo entre compartilhamento e segregação, produzindo-se assim o efeito esperado de estímulo ao desenvolvimento do mercado de fundos de investimento no Brasil.

Adicionalmente, sem considerar quaisquer discussões a respeito da aplicabilidade de norma mais específica em detrimento à norma geral, é importante que se tenha em mente que o art. 76 da MP 2.158, de 24 de agosto de 2001, conforme reeditada de tempos em tempos, permanece em vigor no nosso ordenamento.

Esse dispositivo estabelece a não eficácia de normas que visem à afetação ou à separação, a qualquer título, de patrimônio de pessoa física ou jurídica, em relação a débitos de natureza fiscal, previdenciária ou trabalhista, em especial quanto às garantias e aos privilégios que lhes são atribuídos.

Em conclusão, destacamos a importância das inovações trazidas pela Lei de Liberdade Econômica para o desenvolvimento e evolução do mercado de capitais no país, em especial em relação ao arcabouço legal e regulatório aplicável aos fundos de investimento.

Porém, existem inúmeros desafios à implementação de tais inovações sob a perspectiva regulatória que merecem bastante cuidado e atenção, tanto por parte do mercado quanto da CVM, para que não se desperdice a oportunidade de se promover melhorias substanciais ao pleno desenvolvimento deste segmento de mercado, em razão da imposição de dispositivos regulatórios que possam eliminar ou desincentivar as inovações antes que elas tenham de fato surgido.

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Ronaldo Ishikawa

Ronaldo Ishikawa é sócio fundador do i2a advogados. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco - USP, com qualificação em Administração Empresarial e Tributária. Mestre em Direito (LL.M) pela University of Michigan Law School, com ênfase em regulação dos mercados financeiro e de capitais.