O futebol além da SAF e da liga: voltamos ao Fair Play Financeiro

O futebol precisa de regras que garantam que as estruturas funcionem. Essa demanda deveria partir dos clubes que já fizeram o dever de casa e dos novos donos das SAFs

Cesar Grafietti

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Getty Images
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Esta não é mais uma coluna sobre SAF, valuation, negociações de clubes ou ligas. Na verdade, é também sobre isso, mas não diretamente.

Quando falamos dos temas acima, temos sempre que os colocar dentro de um contexto maior, que é a estruturação da indústria do futebol.

Pelo mundo, ligas e competições fortes estão estruturadas em alguns pilares que permitiram que os negócios se desenvolvessem. Dentre eles, está a gestão profissional de clubes que, por sua vez, disputam competições organizadas por ligas. Mas não acaba por aí.

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Há um arcabouço técnico que permite que esses negócios se sustentem, representados por regras de controle externo. Dois “documentos” se destacam: o caderno de licenciamentos e o fair play financeiro.

Lá vamos nós falar sobre fair play financeiro novamente. O tema segue importante, sempre lastreado na ideia que sua aplicação permite a sustentabilidade do sistema.

Se, antes da chegada das SAFs, a ideia por trás do sistema de fair play financeiro era levar os clubes ao equilíbrio, agora o tema ganha um reforço: precisamos garantir que a competitividade seja preservada e que o futebol brasileiro tenha regras que preservem investidores e associações.

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Sim, o fair play financeiro protege a todos, especialmente quem quer fazer um trabalho correto e de longo prazo. Para esta análise, vamos separar os clubes em três grupos:

Associações em desequilíbrio financeiro

Para elas, o sistema deve funcionar como uma espécie de consultoria gratuita que lhe entregue indicadores que as levarão ao equilíbrio.

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Reduzir custos e despesas, adequar investimentos e reestruturar as dívidas não deveriam apenas ser metas, mas obrigações, para que esses clubes se tornem competitivos perante o cenário que se avizinha. Não dá mais para trabalhar com a ideia de gastar agora para colher depois, porque a competição passou a ser contra equipes estruturadas e SAFs com donos que têm dinheiro e tendem a aportar profissionalismo e modelos eficientes de gestão.

Associações já equilibradas

Para essas equipes, o fair play financeiro funciona como garantia de que ter a casa arrumada é um benefício.

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Operar dentro dos limites, ter as contas em dia e capacidade de investir precisa ser um prêmio em relação a quem fez tudo errado até agora. E mais: é preciso que o sistema controle as novas SAFs, evitando que haja injeção de dinheiro sem lastro. Não que eu acredite nisso, mas se há risco, há chance de acontecer.

Também deveriam estar atentas àquelas associações que seguem esbanjando e destruindo seu futuro em nome do presente. Ou seja, os que estão equilibrados deveriam ser os primeiros a defender a implantação do fair play financeiro.

SAFs

Há dois tipos de SAF dominando a mente dos torcedores: i) aquela em que o dono vai injetar um caminhão de dinheiro e transformar a entidade num clube bilionário e cheio de craques, e; ii) a real, em que o dono tem orçamento, gestão, controla os gastos na unha, investe para resultados de longo prazo e faz boas contratações, mas não queima dinheiro.

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Pensando na imaginária, o fair play financeiro funciona para evitar exageros que tornem equipes que faturam R$ 50 milhões em potências que gastam R$ 500 milhões, apresentando competitividade irreal. Isso preserva as associações equilibradas.

Para o perfil real, o modelo trabalha para defender a SAF das associações que gastam sem freio, atrasam pagamentos, se endividam e se tornam competitivas artificialmente, inviabilizando um projeto sério e equilibrado.

Veja, portanto, que o fair play financeiro segue sendo a melhor forma de controlar o sistema e torná-lo equilibrado e sustentável.

Afinal, exceto para quem pretende operar fora da capacidade, todos os demais participantes da indústria se beneficiam de controles de gastos.

No Brasil, assim que as demonstrações financeiras de 2021 estiverem disponíveis, iniciaremos os cálculos do modelo. Ainda que não esteja em operação, o sistema já roda há três anos. Temos um diagnóstico que serve a todos os clubes. Alguns, inclusive, já utilizam as métricas como referência de boas práticas.

Naturalmente, com o advento das SAFs, trabalharemos em ajustes do modelo e dos regulamentos, de forma a operar dentro dos conceitos que comentei acima. Mas, essencialmente, buscando o equilíbrio e a sustentabilidade da indústria.

Na Europa, o presidente da Uefa, Aleksander Ceferin, afirmou que o novo sistema de fair play financeiro da entidade está em fase final de estruturação e deverá ser apresentado ao final da temporada 2021/22. Ele segue com a tese de que o maior objetivo do sistema é a sustentabilidade.

É importante que seja assim. Espero que, após as críticas à ideia do Luxury Tax, ela seja banida e ocupada por uma estrutura de controle eficiente de gastos.

Para quem não sabe, a Luxury Tax é uma espécie de contribuição que os clubes são obrigados a pagar sempre que estourarem seus orçamentos com contratações, cujo dinheiro é redistribuído para os demais clubes. Mas ela não garante sustentabilidade, apenas separa ainda mais os ricos dos pobres.

Modelo eficiente é aquele que proíbe atrasos, limita gastos às receitas, controla o tamanho das dívidas e o dinheiro injetado de forma artificial nos clubes. Qualquer coisa diferente disso é invenção.

Nesta semana, a Uefa convocou 30 clubes europeus de primeiro nível para explicar suas contas ao comitê do fair play financeiro. Ninguém espera sanções para este primeiro momento, mas certamente haverá indicações sobre os procedimentos futuros, considerando o novo formato do sistema.

Voltando ao Brasil, discutiremos algumas ideias de evolução e adaptação do modelo à nova realidade da indústria. Devemos considerar as SAFs isoladamente ou em conjunto com a dívida que ficou na associação? Seguir com um modelo de ajuste para os desequilibrados e um modelo de controle para os organizados? Ter um modelo único para todos?

Existem inúmeras alternativas e todas seguem o mesmo objetivo: tornar o futebol equilibrado e sustentável. Sei que vocês leram isso algumas vezes neste artigo, mas é fundamental que tenhamos isso em mente.

O futebol vai além da SAF e da liga: ele precisa de regras que garantam que essas estruturas funcionem e pensem apenas no espetáculo. Esta demanda deveria partir dos clubes que já fizeram o dever de casa e dos novos donos das SAFs. Eles devem ser os indutores desse processo.

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Cesar Grafietti

Economista, especialista em Banking e Gestão & Finanças do Esporte. 27 anos de mercado financeiro analisando o dia-a-dia da economia real. Twitter: @cesargrafietti