F-1: esporte, entretenimento e o cuidado com a integridade

Até onde o entretenimento deve ficar acima da competição? Até onde temos que renunciar às regras básicas do esporte para garantir emoção e fãs mais jovens? Onde termina o entretenimento e começa o esporte? Onde fica a integridade?

Cesar Grafietti

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Lewis Hamilton e Max Verstappen após o último GP da temporada 2021 (Lars Baron/Getty Images)
Lewis Hamilton e Max Verstappen após o último GP da temporada 2021 (Lars Baron/Getty Images)

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Esporte e entretenimento andam cada vez mais próximos. Já não se pode falar em “mãos dadas”, mas sim numa simbiose. Não há mais esporte sem que haja algum elemento de entretenimento associado a ele. E entre os esportes que mais tem se aproveitado dessa relação, destaca-se a Fórmula 1.

Até algum tempo atrás, as competições de velocidade eram taxadas de ultrapassadas, pois eram consideradas desinteressantes, com poucas e espaçadas emoções ao longo de duas horas de prova. Sem contar a previsibilidade, que garantia quase nenhuma surpresa ou competitividade.

E a categoria não parecia muito interessada em mudanças. Grandes marcas se associavam ao esporte, seja como equipes, seja como patrocinadores. Havia um público grande e fiel, audiência de TV. Então, o que havia de errado?

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Em 2017, o então chefão da F-1, Bernie Ecclestone, disse numa entrevista à Campaign Asia-Pacific Magazine: “Jovens olham uma propaganda de relógios caros e bancos de alta renda e não se veem neles. Não têm renda. Não sei por que as pessoas se preocupam com as ‘novas gerações’. Afinal, o que eles consomem? Prefiro acessar os consumidores com os bolsos cheios de dinheiro”.

No mesmo 2017, a Fórmula 1 foi vendida para o grupo Liberty Media e passou por uma enorme transformação. Não dá para dizer que Ecclestone estivesse completamente errado, mas certamente estava vendo apenas parte do processo. Afinal, os consumidores de hoje deixarão de ser amanhã. É necessário buscar novos consumidores.

A revolução que a Liberty Media fez passa por uma série de ações, que se iniciam com uma série de streaming para o Netflix chamada “Drive to Survive”, que reconta a temporada a partir de uma visão mais humana dos pilotos. É uma forma de aproximar as pessoas comuns daqueles personagens que, muitas vezes, não vão além de um carro e um capacete. Personifica e aproxima.

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Além disso foi lançado um canal próprio de streaming, a F1TV, que possibilitou uma nova forma de acompanhar a competição, com inúmeras câmeras, dados, informações e a chance de acompanhar a temporada a seu modo, escolhendo a forma de seguir as corridas.

Esse projeto gerou frutos. Uma pesquisa realizada pela F-1 em parceria com a Nielsen, com 167 mil entrevistados de 187 países, mostrou que a idade média de quem acompanha a competição caiu de 36 anos em 2017 para 32 anos em 2021. Um dado que reforça esse rejuvenescimento é o fato de 80% dos assinantes da F1TV no mundo terem menos de 35 anos.

Os números de 2021 mostram dados bastante animadores para a competição. A audiência global acumulada foi de 1,55 bilhão de pessoas (4% acima de 2020), sendo que 445 milhões de pessoas assistiram ao menos uma corrida (3% acima de 2020).

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No Brasil, os dados não foram divulgados, mas a F-1 informou que, apesar da redução na quantidade total de pessoas que acompanharam as provas, houve aumento do tempo médio ligado, com melhor definição do público-alvo.

Conversei com o sócio da Sport Track, agência de marketing esportivo que realiza pesquisa anual sobre a indústria do esporte no Brasil. Segundo ele, na pesquisa anual da empresa em 2019, a base de fãs da F-1 no Brasil era de 81% homens e 19% mulheres, com fãs entre 16 e 44 anos compondo 41%. Em 2020 houve uma mudança, com homens representando 76%, mulheres 24% e fãs entre 16 e 44 anos 50%.

Na pesquisa de 2021, os dados, ainda em análise, devem mostrar rejuvenescimento e maior presença feminina. O executivo me disse que “é um processo que, apesar de lento, está acontecendo”.

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Um aspecto interessante foi a quantidade de pessoas nos autódromos: foram 2,69 milhões de pessoas acompanhando as provas, com o maior público no Grande Prêmio de Austin (EUA), com 400 mil pessoas nos três dias de competição.

Obviamente que a temporada eletrizante, decidida praticamente na última curva da última corrida, ajudou nesse interesse. Além, claro, do carisma de Lewis Hamilton e da “marra” de Max Verstappen. Emoção até o final, com punições aqui e ali ao longo da temporada, aumentando o drama e o entretenimento.

Hummm… entretenimento, material para uma eletrizante temporada de “Drive to Survive” e uma competição decidida de forma questionável para garantir o tal entretenimento.

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Para lembrar o que houve: a competição final estava paralisada na última volta, com Hamilton na frente e safety car na pista. Caminhava para um final sem disputa e o título para Hamilton quando o diretor de prova Michael Masi tomou algumas decisões, no mínimo, questionáveis, como autorizar que os retardatários fossem ultrapassados com o safety car na pista – o que permitiu a Verstappen ultrapassar cinco carros que o separavam de Hamilton – e posteriormente autorizou a retomada da prova ainda sob protestos da Mercedes.

Tudo muito incomum. Mas tudo para beneficiar “o espetáculo”, o “entretenimento”. Afinal, seria um anticlímax terminar uma temporada espetacular com safety car na pista. Mesmo que o “espetacular” tenha tido momentos de pouca esportividade, sempre em nome do entretenimento.

Nesta semana, já nos preparativos para a temporada 2022, com as equipes apresentando seus novos carros, foi anunciada a demissão de Michael Masi, duramente criticado por especialistas em função da lambança feita em Abu Dhabi, que garantiu a emoção e o título a Max Verstappen.

E, claro, mais uma temporada eletrizante da série no Netflix, muitas matérias na imprensa, o fomento da disputa Hamilton/Verstappen e uma mudança no cenário de monotonia de conquistas recentes do piloto britânico. E, naturalmente, mais dinheiro para a categoria e interesse de fãs. Talvez ainda mais jovens.

A pergunta que fica é: até onde o entretenimento deve ficar acima da competição? Até onde temos que renunciar às regras básicas do esporte para garantir emoção e fãs mais jovens? Onde termina o entretenimento e começa o esporte? Onde fica a integridade?

Dá para dizer que a lambança foi apenas em função do entretenimento? Não é possível afirmar. Mas sempre digo que aquilo que parece estranho é sempre apenas estranho mesmo. Logo, sem teorias tolas da conspiração. Mas há uma certa lógica.

Precisamos tomar muito cuidado quando pensamos mais no entretenimento do que no esporte. Uma parte do consumidor atual e que, possivelmente, representa uma mudança estrutural na forma de consumir, quer ir além da competição.

Séries sobre atletas, clubes e esportes ajudam e trabalham para que as competições permaneçam em movimento mesmo quando as temporadas se encerram. Séries como “All or Nothing”, “The Last Dance”, o documentário “Romário, o Cara”, sobre a carreira do Romário que está sendo gravado pela Feel the Match e será apresentado pela HBO Max, o recente documentário sobre Neymar do Netflix.

Tudo isso engaja, aproxima (ou afasta) e faz parte da ideia de que é preciso ir além da competição. Mas é necessário cuidado para que a criatura não atinja o criador. Porque quando o entretenimento fica maior que a competição, alguma coisa deu errado.

Para finalizar, retomo um dado que a Associação Europeia de Clubes de Futebol (ECA) publicou em 2020 sobre interesse do público sobre o esporte.

Independentemente de ser apenas uma foto que representa um momento e, por isso, torna a análise meio capenga (deveríamos ter uma evolução comparativa que permitisse analisar de forma correta o dado, mas paciência), a pesquisa feita em vários países indica o seguinte:

Até os 15 anos de idade, o interesse em futebol é altíssimo. Depois, entre 16 e 24 anos, ele cai bastante, para mais tarde se recuperar e se manter estável ao longo do tempo.

É natural que haja esta queda num momento em que os jovens estão com outros temas em mente, e que ele volte ao longo do tempo. O dado sozinho diz pouco, mas dá uma certa ideia sobre a necessidade de se fazer um esforço enorme para acessar uma geração que, naturalmente, tende a ampliar seu leque de opções de entretenimento. Geralmente, são gerações que têm pouco dinheiro e dependem dos pais para consumir.

Então, voltamos a Bernie Ecclestone. Ele não estava errado quando dizia que se interessava nos mais velhos e com dinheiro para consumir. Mas ele tomava um caminho perigoso ao não entender que, em algum momento, a geração muda.

O importante é saber a hora e a forma de acessar todas as gerações, mas sem esquecer que o mais importante é garantir que é o esporte quem gera conteúdo – e não o conteúdo que alimenta o esporte.

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Cesar Grafietti

Economista, especialista em Banking e Gestão & Finanças do Esporte. 27 anos de mercado financeiro analisando o dia-a-dia da economia real. Twitter: @cesargrafietti