A “crise da meia-idade” do Bitcoin

Ouro digital, ordinals e smart contracts em rota de colisão?

Gustavo Cunha

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

(Kanchanara/Unsplash)
(Kanchanara/Unsplash)

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Nos últimos meses, a discussão sobre a rede Bitcoin tem sido intensa. Após anos de pouca inovação nessa rede, que parecia estar confortavelmente estável na posição da rede do “ouro” digital, surgiram novidades e discussões que reativaram questões sobre o real valor do Bitcoin e as narrativas que o sustentam.

A primeira narrativa, que já foi mencionada acima, é a de que o Bitcoin seria um ouro digital. O ouro da nova era, muito mais eficiente, fácil de armazenar e tão, ou mais, escasso que o ouro físico. Essa função do Bitcoin foi muito especulada e, durante alguns anos, a correlação entre o Bitcoin e o ouro corroborava com essa visão. Nos últimos trimestres, mais precisamente após o início de 2022, essa correlação começou a diminuir, e, em 2022, essa correlação praticamente não existiu.

Não vou repetir as vantagens de um ativo digital escasso, com custódia individual, fungível e com custo de transação e manutenção baixos em relação ao ouro físico. Embora, no caso do ouro, tenhamos criado no mercado financeiro títulos securitizados e derivativos que facilitam muitos desses pontos acima, a verdade é que obter ouro físico em barra, sem a necessidade de um intermediário, é uma tarefa quase impossível para valores um pouco maiores. Nesse sentido, o Bitcoin leva a vantagem.

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Por outro lado, será essa narrativa sustentável no longo prazo? Se a rede Bitcoin for simplesmente utilizada como a rede de transação desse ouro digital, com o único objetivo de transferência de valor no tempo, ou seja, na ideia de comprar algo que pelo menos acompanhe a inflação, não estaria essa rede fadada ao insucesso? Explico.

Na minha humilde opinião, o que dá valor ao Bitcoin é a comunidade apaixonada que o vê como o melhor ativo do mundo e acredita que ele vai superar todos os outros ativos em termos de preço nos próximos anos. Essa comunidade, que inicialmente tinha muito dos conceitos de privacidade e de conseguir fazer algo fora do controle do Estado (sem nenhum viés meu aqui sobre se o Estado é bom ou ruim), passou hoje a ser muito mais ampla e com pessoas que têm objetivos e conceitos diferentes. No entanto, vários episódios recentes mostraram que o Estado conseguiu chegar a pessoas que utilizaram essa rede com objetivos escusos, o que indica que o argumento de privacidade, que era muito forte no início, perdeu força. Na verdade, temos aqui um caso de “pseudoprivacidade” e não de privacidade.

Bem, se o que dá valor ao Bitcoin é sua comunidade, vejo como uma necessidade de que essa comunidade continue sendo nutrida e continue recebendo indicações de que o Bitcoin é “o ativo”. No entanto, isso me parece inconsistente com o único caso de uso do Bitcoin.

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Vale ressaltar que algumas decisões tomadas pela comunidade do Bitcoin também contribuíram para que a rede não se tornasse uma infraestrutura de pagamentos global. É claro que pagar por um café usando essa rede não seria um caso de uso viável, seja devido ao custo de transação ou ao tempo de registro dos blocos (a cada 10 minutos). A Lightning Network, uma camada secundária do Bitcoin, tem ajudado bastante nesse sentido e ganhado representatividade, mas, por não ter as stablecoins da rede Ethereum, tem ficado para trás quando se trata de transferência de valores.

É aqui que entra a questão dos inúmeros testes que começaram a ser feitos na rede Bitcoin nos últimos meses. Os “Ordinals”, que trazem o conceito de NFTs para a rede Bitcoin, têm sido o principal deles, e trouxe um aumento considerável no uso da rede e nas transações.

Há uma grande discussão sobre qual o caminho mais viável para trazer inovações para a rede Bitcoin. Uma das opções mais plausíveis é a situação dos mineradores da rede. Nos últimos trimestres, a situação deles não foi fácil, com o custo de energia aumentando muito e o preço do Bitcoin caindo. Muitos mineradores tiveram que fechar suas operações. O curioso é que o hashrate, a medida de quanto poder computacional a rede tem, só tem crescido, o que aumenta ainda mais a competitividade entre eles e requer uma necessidade ainda maior de gerar caixa. Os mineradores do Bitcoin têm duas fontes de receita: o prêmio em Bitcoin por cada bloco minerado e as taxas cobradas dos usuários da rede por transação. Portanto, quanto mais transações, mais receita para eles. Por isso, eles têm todo o incentivo para que a rede tenha mais casos de uso, novidades e inovações.

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No entanto, essa direção não é isenta de obstáculos. Um dos que tenho notado é que, para criar os NFTs na rede Bitcoin, é necessário associar algo, como uma mensagem ou uma foto, a um dos satoshis (a menor unidade do Bitcoin). Isso cria um dilema interessante, uma vez que esse satoshi deixa de ser valorizado como um ativo fungível. É como se você tivesse uma nota de R$ 50,00 com a assinatura do Pelé. Ela deixa de ser uma nota comum de R$ 50,00 e passa a ter seu valor associado ao fato de ter a assinatura de um ídolo do futebol brasileiro. Agora, imagine se isso fosse feito em escala, todas as notas de R$ 50,00 teriam valores diferentes. É isso que está acontecendo com os “Ordinals” no Bitcoin, e isso traz um dilema entre fungibilidade e não fungibilidade.

Mais recentemente, está se consolidando a ideia de ter um padrão para o desenvolvimento de outros tokens na rede Bitcoin (BRC-20, em referência ao padrão ERC-20 da Ethereum), o que abre outra linha de discussão sobre a possibilidade de ter stablecoins e, por consequência, DEFI crescendo na rede do Bitcoin.

Essa busca por novos casos de uso para a rede Bitcoin me parece bastante tardia, e vejo muita discussão na comunidade sobre sua real necessidade. Será que o Bitcoin está flertando com a ideia de voltar a ser uma infraestrutura de pagamentos global? Ou ir além, tornar-se uma plataforma de inovação mundial, assim como a Ethereum? São questões que ficam em aberto.

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Minha percepção é de que qualquer que seja o rumo que essa rede tome, exceto o de se consolidar como uma rede estável e confiável para transferência intertemporal de valores, isso tem que ser feito rapidamente, já que a consolidação da Ethereum como a principal infraestrutura de inovação da WEB3 já está muito à frente – e acelerando.

Se considerarmos que a vida em cripto é como a dos gatos, sete anos deles valem um para nós humanos, essa crise da meia-idade do Bitcoin vem tardiamente. Mas, como diz o ditado, antes tarde do que nunca!

Long live Crypto! long live Bitcoin!

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Consultas usadas para esse texto:
Bitcoin’s Correlation to Gold Tightened in March Amid TradFi Woes (yahoo.com)
How to track Lightning Network transaction? Lightning Network explorer? : r/lightningnetwork (reddit.com)
What is Lightning Network in Bitcoin and How Does It Work? (101blockchains.com)
What are Bitcoin ordinals? (cointelegraph.com)
Bitcoin Ordinals Are The Next Big Thing In Crypto (forbes.com)

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Gustavo Cunha

Autor do livro A tokenização do Dinheiro, fundador da Fintrender.com, profissional com mais de 20 anos de atuação no mercado financeiro tradicional, tendo sido diretor do Rabobank no Brasil e mais de oito anos de atuação em inovação (majoritariamente cripto e blockchain)