Bourbons tropicais

Há bons motivos para crer que o péssimo desempenho econômico do país nos últimos anos decorra de nossa incapacidade de lidar com a despesa pública. São preocupantes as intenções de acabar com o teto de gastos.

Alexandre Schwartsman

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

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Logo no início do monumental Conversa na Catedral, Mario Vargas Llosa faz a pergunta que caberia a quase todos países latino-americanos: “em que momento o Peru se ferrou?” (ok, não é “ferrou”, mas mesmo com a falta de compostura de nossos dirigentes, não há motivo para o baixo calão).

A resposta, trabalhada ao longo do romance, sugere período bem anterior ao da “Escolha de Sofia” há pouco enfrentada por aquele país. Mas não trato disso aqui hoje, nem provavelmente no futuro, dado meu escasso conhecimento da história peruana.

Eu me refiro, claro, ao Brasil, na tentativa de entender o que nos levou ao atual estado de penúria, caracterizado pelo PIB ainda quase 3% abaixo do registrado no começo de 2014, talvez melhor expresso pela taxa de desemprego mais de duas vezes mais alta do que a observada naquele momento. Quando foi que o Brasil se… ferrou?

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Há vários candidatos para o momento histórico. Mas meu preferido, inclusive por – sem saber à época – tê-lo testemunhado em primeira mão, foi o da primeira derrota política do então ministro da Fazenda, Antonio Pallocci, quando em 2005, ainda no primeiro mandato do presidente Lula, tentou emplacar um programa de controle de gastos extraordinariamente suave.

A proposta previa limitar o aumento dos gastos correntes a algo inferior ao crescimento do PIB, ou seja, ainda acima da inflação, gerando uma economia na casa de 0,1% a 0,2% do PIB por ano durante vários anos. Não parece muito, mas, aplicada diligentemente, teria efeitos consideráveis.

Naquele ano, o governo federal, ao qual caberia a política, gastou o equivalente a 16,4% do PIB, dos quais pouco menos de 1% do PIB com investimentos. Ou seja, o gasto corrente girava ao redor de 15,5% do PIB. Caso o programa tivesse sido adotado então, a despesa corrente federal teria se reduzido algo entre 14,5% e 15% do PIB no final do primeiro governo Dilma.

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Em vez disto, saltou para algo próximo a 17% do PIB, mesmo com o crescimento vitaminado pelo aumento de preços das commodities em boa parte do período. Já o investimento federal, mesmo livre de amarras e sob a égide do PAC (lembram-se?), cresceu menos de 0,5% do PIB.

A despesa obrigatória, até então mantida abaixo de 90% da despesa total, ultrapassou este patamar em 2015 para nunca mais voltar, resultado das decisões de política que engessaram o orçamento em caráter permanente, fenômeno que também se fez sentir nos estados e municípios.

Assim, quando sobreveio a recessão, ainda em 2014, não havia mais espaço para política fiscal anticíclica, agravado pela inflação alta, que também não permitiu qualquer alívio do ponto de vista da taxa de juros, muito pelo contrário.

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É possível arriscar como teria sido o cenário caso a política fiscal tivesse seguido a orientação do programa de 2005.

Mesmo que o investimento público seguisse anêmico pelas conhecidas limitações da máquina, a trajetória da inflação teria sido distinta, por força da menor pressão de demanda do lado do gasto federal, permitindo juros mais baixos e, consequentemente, menor endividamento, seja pelo resultado primário mais parrudo, seja pelo juro real mais baixo sobre a dívida.

Adicionalmente, diga-se, as barbeiragens no controle de preços de combustíveis e energia provavelmente não teriam ocorrido, preservando assim tanto a Petrobras quando o setor elétrico.

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Não haveria, desta forma, motivo para que o desempenho do país fosse tão inferior ao dos demais países da América Latina, também afetados pela queda das commodities em meados da década passada.

Em vez de redução de crescimento de quase 7 pontos percentuais (queda de 3,4% ao ano entre 2014 e 2016 contra expansão de 3,4% ao ano nos cinco anos anteriores), poderíamos ter sofrido desaceleração da ordem de 2,2 pontos, como a mediana dos outros países da região.

Teríamos crescido menos, mas evitado a maior recessão da história recente e, de quebra, também as dúvidas que hoje persistem sobre a sustentabilidade do endividamento público.

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Como se sabe, a fatídica decisão de 2005 foi influenciada, e muito, pela postura da então ministra-chefe da Casa Civil, que, do alto da sua também monumental ignorância, proclamou “gasto corrente é vida”. Não me escapa a ironia dramática da fulminadora do programa ter se tornado sua própria vítima anos mais tarde.

Mas, ainda mais relevante do que a Schadenfreude proporcionada pelo evento, são os sinais que os demais envolvidos não parecem ter aprendido rigorosamente nada (nem esquecido de nada) com o desenrolar dos acontecimentos.

À parte o esforço, tão denodado quanto patético, dos que ainda querem reescrever a história recente do país, jogando na conta de outros seus muitos e profundos erros, o ex-presidente Lula, candidatíssimo no ano que vem, já deixou clara sua oposição ao teto de gastos, já bastante minado, diga-se, pelo atual governo.

Dentre as alternativas presentes, continuo com George Washington.

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Alexandre Schwartsman

Alexandre Schwartsman foi diretor de assuntos internacionais do Banco Central e economista-chefe dos bancos ABN Amro e Santander. Hoje, comanda a consultoria econômica Schwartsman & Associados. Formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, fez mestrado em economia na Universidade de São Paulo e doutorado em economia na Universidade da Califórnia em Berkeley.