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O governo federal, representado pelo Ministério da Defesa, não vê risco à soberania nacional nas contratações de engenheiros extremamente qualificados que a Boeing (BOEI34) tem feito em São José dos Campos (SP), berço da Embraer (EMBR3) e do setor aeroespacial e de defesa brasileiro. Isso fez com que o juiz Renato Barth Pires enviasse a Ação Civil Pública (ACP) contra a gigante americana da Justiça Federal para a Estadual.
O Ministério da Defesa afirma em parecer que “fica notório a ação de captura de talentos profissionais brasileiros pelo grupo Boeing”, mas pondera que os argumentos apresentados na ACP “ainda não são suficientes para demonstrar o interesse processual da União no escopo da soberania nacional” (veja mais abaixo).
A ACP tenta impor uma série de restrições à gigante americana, alegando que as mais de 200 contratações já feitas (e que continuam ocorrendo) ameaçam a soberania nacional. Ela é capitaneada pela Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde) e pela Associação das Indústrias Aeroespaciais do Brasil (AIAB), em um processo movido em novembro pelo escritório Tojal Renault Advogados. A Embraer é associada tanto à Abimde quanto à AIAB.
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O ministério afirma ainda que, como “não há dispositivos legais em vigor […] que possam ser empregados de imediato para cessar as ações negativas da Boeing”, são necessários “estudos para o aperfeiçoamento de dispositivos legais e infralegais” – sejam em leis, decretos ou políticas públicas – “que venham a mitigar ações dessa natureza, praticadas pelo grupo Boeing ou outro qualquer”. “Inclui-se nesse aspecto instrumentos que visem ao aprimoramento de mecanismos para incentivar a formação e a especialização de engenheiros aeronáuticos e aeroespaciais”.
Procuradas, as duas associações disseram que vão recorrer da decisão da 3ª Vara Federal de São José dos Campos. “As empresas que compõem a Base Industrial de Defesa (BID) do país estão sofrendo severos prejuízos com a captura sistemática e contratação de engenheiros altamente qualificados. Tal prática coloca em risco a sobrevivência de toda uma cadeia e, sobretudo, ameaça uma questão estratégica: a autonomia do Estado brasileiro”.
Já a Boeing afirmou no processo, após a manifestação do governo federal, que “nem a União, nem o Ministério da Defesa e suas três Forças Armadas, veem mérito nesta infundada Ação Civil Pública”. A empresa diz ainda que “a União concluiu ser o caso de não atuar como litisconsorte ativo — algo requerido pelas autoras — ou como amicus curiae nesta alegada Ação Civil Pública”. “Com isso, não só deslocou a competência da ação para a Justiça Estadual, como também esvaziou o alegado principal fundamento da ação, que seria a suposta proteção da soberania nacional”.
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O InfoMoney tem mostrado nos últimos dias que, anos após a Boeing desistir de comprar 80% da divisão comercial da Embraer por US$ 4,2 bilhões, a empresa americana tem avançado sobre os talentos da brasileira — e também de outras companhias do setor –, contratando “a elite da engenharia aeroespacial brasileira”, nas palavras de Roberto Gallo, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde).
O foco tem sido engenheiros de nível sênior, principalmente das áreas de estratégia e aviônica, que têm anos de experiência, chefiam importantes áreas de desenvolvimento de aeronaves e acesso a informações privilegiadas de projetos com segredos industriais, como os caças Gripen. Das mais de 200 contratações feitas pela Boeing desde 2022, mais de 90 foram de profissionais da Embraer (veja mais abaixo).
Pedidos da Ação Civil Pública
Em meio às centenas de contratações, que têm causado um “terremoto” no setor aeroespacial brasileiro, as associações ingressaram com a ACP para que a Boeing seja impedida de contratar mais do que 0,6% do quadro de engenheiros por ano de cada uma das Empresas Estratégicas de Defesa (EED) e das Empresas de Defesa (ED), que atuam no desenvolvimento de Produtos Estratégicos de Defesa (PED).
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Caso o pedido seja atendido, a Boeing seria limitada a contratar apenas 21 engenheiros por ano da Embraer — pois a empresa brasileira tem cerca de 18 mil funcionários atualmente, dos quais 3,5 mil são do corpo de engenharia — e praticamente nenhum profissional das empresas menores do polo tecnológico de São José dos Campos — pois ficaria limitada a contratar engenheiros apenas das empresas com mais de 167 profissionais atuando na área.
A ACP pede também que a gigante americana seja multada em R$ 5 milhões por profissional de engenharia contratado acima do limite (e que o valor seja revertido à empresa afetada), além de obrigá-la a destinar à Fundação de Ciência, Aplicações e Tecnologia Espaciais (Funcate) o mesmo valor que a Embraer e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) já gastaram nos 21 anos do Programa de Especialização em Engenharia (PEE).
O PEE oferece um curso de mestrado profissional – a principal porta de entrada para engenheiros recém-formados na Embraer –, e a empresa brasileira investe cerca de R$ 5 milhões por ano no programa, que desde o início dos anos 2000 já formou 1,6 mil engenheiros (uma média de 76 por ano). As associações querem que a verba destinada à Funcate seja usada para formar profissionais de engenharia aeronáutica no país, devido à escassez de mão de obra do setor.
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O que diz a Boeing
Antes mesmo de ser intimada a se defender no processo, a Boeing já se manifestou duas vezes. A gigante americana diz que a Abimde e a AIAB “não possuem legitimidade ativa para propor uma Ação Civil Pública” e querem impedir a empresa de “exercer seu direito constitucional de livre contratação de funcionários”. Diz também que “as associações não fornecem qualquer base legal para as medidas extremas pleiteadas” e que o processo deve ser extinto.
A Boeing chama o limite de 0,6% de contratação, que a Ação Civil Pública tenta impor, de “número irrisório e arbitrário” e diz que “não pode ser impedida de oferecer bons salários e boas posições aos trabalhadores no Brasil”. A companhia diz também que “engenheiros brasileiros são livres para trabalhar na empresa que ofertar melhores condições de trabalho, especialmente em um mercado altamente especializado”, e que proibi-la de contratar engenheiros “seria abusivo e desproporcional”.
“Não há nos autos qualquer elemento de prova e sequer se esforçam as autoras a indicarem quais segredos industriais da Embraer teriam sido indevidamente apropriados”, afirma a empresa americana. “Além de saltar aos olhos o uso de uma Ação Civil Pública para defesa de interesses individuais da Embraer, a ausência de informações mínimas sobre quais seriam as supostas informações confidenciais estratégicas evidencia não haver qualquer probabilidade de violação do pretenso direito”.
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Participação do governo
Foram as próprias associações que pediram, na Ação Civil Pública, que o governo federal se manifestasse no processo. Elas ressaltaram que a ação estava “intimamente relacionada à tutela da soberania nacional” e que os temas eram “de interesse e competência da União, que deverá ser intimada para se manifestar previamente sobre os pedidos cautelares realizados, bem como para eventualmente ingressar no presente feito na qualidade de litisconsorte ativo” (ser parte do processo).
A petição inicial afirma que “cabe à União resguardar a autonomia tecnológica e a capacidade de defesa aeroespacial do território brasileiro e da zona econômica exclusiva”, por isso “faz-se necessária a oitiva prévia do seu órgão de representação judicial, assim como do Ministério da Defesa, sobre os pedidos”.
Antes de tomar qualquer decisão sobre o mérito da ACP ou sobre os pedidos liminares das associações (de restringir as contratações da Boeing), a Justiça Federal intimou o governo federal a se posicionar. Em entrevista ao InfoMoney, antes da manifestação do governo no processo, as associações acreditavam que a União seria favorável ao pleito — o que não ocorreu.
O parecer da União
O governo é representado na ação pela Advocacia-Geral da União (AGU), com suporte de parecer do Ministério da Defesa (MD). O ministério afirma em sua análise da questão que “o problema exposto pelas associações representativas Abimde e AIAB é de grande relevância” e que “está convencido que o fomento à Base Industrial de Defesa (BID) está sendo prejudicado pela degradação da capacidade produtiva das empresas de Defesa, caracterizada pela captação praticada pelo grupo econômico Boeing”.
A pasta afirma que “considera pertinente a preocupação das associações que fazem parte da lide, sobretudo no que diz respeito à possibilidade da ocorrência de possíveis danos às empresas de menor porte da BID”, mas ponderou que “as três Forças Armadas foram uníssonas e não assinalaram argumentos ou materialidade de que os projetos estratégicos ou contratos sensíveis na área de defesa estariam sendo comprometidos, em função da captura de talentos por parte do grupo Boeing, até a presente data”.
Diante disso, o Ministério da Defesa afirma que os argumentos apresentados na ACP “ainda não são suficientes para demonstrar o interesse processual da União no escopo da soberania nacional”. “Não foram vislumbrados dispositivos legais em vigor, no âmbito deste MD, que possam ser empregados de imediato para cessar as ações negativas da Boeing nesse campo comercial, sobretudo devido ao princípio da livre concorrência de mercado“.
O ministério diz ainda que o “posicionamento expresso pelas Forças Armadas, nesse momento, à luz da missão deste MD e sob a pertinência temática da soberania nacional, não traz ao relevo o interesse de agir da União”. Diante do parecer da Defesa, a AGU se manifestou no processo “no sentido da atual ausência de interesse que justifique a intervenção da União na presente demanda”.
Apesar da negativa, o governo federal afirma em seu parecer que, segundo as informações fornecidas pelas empresas (entre as quais a Embraer), “fica notório a ação de captura de talentos profissionais brasileiros pelo grupo Boeing, sobretudo no polo industrial aeronáutico de São José dos Campos”, e que isso “está afetando frontalmente a capacidade dos recursos humanos daquele setor da BID”.
Boeing x Embraer
A “disputa por cérebros” entre a Boeing e a Embraer no interior de São Paulo ocorre anos após a gigante americana desistir de comprar a divisão comercial da brasileira, em um negócio de US$ 5,2 bilhões. As duas empresas formariam uma joint venture, e a Boeing pagaria US$ 4,2 bilhões à Embraer por 80% da nova empresa (os outros 20% continuariam com a multinacional brasileira).
O negócio foi divulgado pela primeira vez no fim de 2017 e evoluiu para um acordo, mas em abril de 2020, depois de mais de dois anos de negociação e adaptações (a Embraer chegou a segregar toda a sua divisão comercial do restante da companhia), a Boeing anunciou a desistência do negócio.
Na ocasião, o mundo vivia a incerteza do início da pandemia de Covid-19 e a Boeing enfrentava uma série de graves problemas com o 737-Max. Dois aviões do modelo caíram em um intervalo de cinco meses, matando 346 pessoas, o que fez com que governos proibissem o 737-Max de voar e companhias aéreas de todo mundo fossem obrigadas a permanecer com suas aeronaves em solo.
Ao anunciar a desistência, a Boeing afirmou que a Embraer não tinha cumprido o contrato. A empresa brasileira negou e disse que a Boeing rescindiu “indevidamente” o acordo, “fabricando falsas alegações” e que a americana vinha adotando “um padrão sistemático de atraso e violações repetidas ao MTA (acordo), pela falta de vontade em concluir a transação, pela sua condição financeira, por conta dos problemas com o 737-Max e por outros problemas comerciais e de reputação”.
As duas empresas estão em um processo de arbitragem, que já se arrasta por quase três anos, para definir quem está com a razão (e se uma companhia deve indenizar a outra pelo fim do acordo).
Em seus balanços financeiros, a Embraer diz que “não há garantias com relação ao tempo ou resultado dos procedimentos arbitrais ou qualquer reparação que a Embraer possa receber ou perda que a Embraer possa sofrer como resultado ou com relação a tais procedimentos arbitrais”; já a Boeing afirma que “a disputa está atualmente em arbitragem”, que não pode “estimar razoavelmente uma faixa de perda, se houver”, e que espera que o processo seja concluído “no final de 2023 ou início de 2024”.
Decisão do juiz
Após o parecer do governo federal, de não ver motivos para participar do processo, o juiz Renato Barth Pires, da 3ª Vara Federal de São José dos Campos, afirmou em seu voto que “não há razão para que a presente Ação Civil Pública tenha curso perante a Justiça Federal”. “Mesmo que, por hipótese, os interesses em discussão possam afetar indireta ou remotamente assuntos como a soberania, segurança ou defesa nacional, ou mesmo a Política Nacional da Base Industrial de Defesa”.
O magistrado inclusive abordou o negócio frustrado entre as duas gigantes da aviação. “Uma coisa será uma simples disputa relativa ao mercado de trabalho dos engenheiros aeronáuticos, em que provavelmente as requeridas estejam oferecendo maiores salários e melhores condições de trabalho. Outra coisa, bastante diversa, seria o intuito deliberado de captação de pessoas não por suas competências e habilidades, mas com a finalidade dissimulada de desvendar segredos industriais compartilhados durante os trâmites do acordo Boeing/Embraer que, ao final, não se concretizou”.
Pires pondera, no entanto, que “sem que dessa controvérsia decorram reflexos na esfera de direitos subjetivos e interesses da União, falta à Justiça Federal competência para processar e julgar o feito”. “Em face do exposto, reconheço a incompetência absoluta deste juízo para processar e julgar o presente feito e determino a remessa dos autos a uma das Varas da Comarca de São José dos Campos”.
O juiz afirma inclusive que a União poderia fazer parte do processo, mesmo que entendesse não haver ameaça à soberania nacional. “Mesmo que, em tese, não esteja presente um interesse jurídico direto da União a ser tutelado, a lei faculta que, a seu pedido, passe a figurar como assistente simples de uma das partes. Uma vez manifestado esse interesse, firma-se a competência da Justiça Federal”, afirma Pires em sua decisão. Mas o governo federal abriu mão desta possibilidade, em sua manifestação.
É desta decisão da Justiça Federal que a Abimde e a AIAB vão recorrer. Caso não tenham sucesso, a Ação Civil Pública será julgada pela Justiça Estadual.
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