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Em a Grande Depressão Americana, Murray Rothbard apresenta uma complexa e bem construída narrativa da cadeia causal que levou os Estados Unidos e boa parte do mundo a experimentar não só uma depressão econômica de graves proporções, como uma recuperação lenta e marcada por grande desemprego. O quadro depressivo iniciado em setembro de 1929 só seria efetivamente superado nos Estados Unidos com o início do esforço de guerra1 que, graças aos mais de cinco mil quilômetros de Oceano Atlântico que separam os EUA da Europa, não veio acompanhado da costumeira destruição que uma guerra mundial geralmente proporciona. Foi uma circunstância única e abertamente favorável à recuperação americana.
Em sua análise da Grande Depressão, Rothbard se reporta constantemente a conceitos da Teoria Austríaca do Ciclo Econômico (TACE), cujo maior intérprete, Ludwig Von Mises, foi seu professor, orientador e mentor. Não por outra razão, Rothbard inicia “A Grande Depressão Americana” dissecando a TACE e contrapondo seus axiomas às posições de outras escolas de pensamento da teoria do ciclo econômico.
Segundo a TACE, conforme interpretação de Rothbard, variações de preço ocorrem em diversos mercados, ditadas por fatores relacionados direta ou indiretamente àqueles mercados. O comportamento natural de qualquer economia saudável é sempre ter muitos empreendedores ganhando dinheiro e apenas alguns perdendo.
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O que é dificilmente explicável é a coincidência de todas as empresas de uma economia lucrarem ou terem prejuízo juntas, em aparente sincronia. Em outras palavras, é extremamente improvável que todos os empreendedores “errem” ou “acertem” em seus negócios ao mesmo tempo, dando forma ao que conhecemos por “ciclo econômico”.
Tal improbabilidade é perfeitamente explicável, contudo, se considerarmos o único bem que permeia toda uma economia: o dinheiro. A mudança na demanda e, principalmente, na oferta de dinheiro, explica a ocorrência do ciclo econômico.
Rothbard, portanto, aponta como responsáveis pela Grande Depressão o Banco Central (Fed) e o Governo Americano, uma vez que levaram a cabo uma década de políticas inflacionárias.
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Rothbard traz à tona outro elemento importante de sua construção da TACE: o papel do governo em depressões. Recessões e depressões são ajustes necessários para reequilibrar a economia e “liquidar” rapidamente aqueles investimentos malsucedidos feitos durante o boom. Quanto mais interferência do governo houver nesse processo, mais longo e doloroso será o ajuste. As políticas eminentemente inflacionárias que seduzem os governos em crises nada mais fazem do que prolongar o boom e aprofundar os efeitos do estouro2.
Nesse sentido, uma característica importante da narrativa de Rothbard sobre a Grande Depressão é sua ênfase nos quase dez anos de política expansionista do Federal Reserve e do Governo Americano, entre 1920 e 1929. Trata-se de um bem-vindo contraponto à narrativa Keynesiana, a qual descreve o tema a partir do crash de 1929, como um evento isolado, e segue dali para uma narrativa focada na glorificada solução estatal, encapsulada no New Deal de 1933.
O ciclo de expansão pré-1929 foi marcado por diversas doutrinas do Fed e do governo americano, e Rothbard é minucioso em apontar as mudanças quantitativas e qualitativas causadas ao longo do período. É possível destacar os seguintes fatores como distintivos da expansão dos anos 1920: (i) o volume de depósitos mantidos nos bancos americanos, contando bancos filiados e não filiados ao Fed, expandiu tremendamente, chegando a 450% de expansão em certas contas3, (ii) se ao longo da década o Fed, de maneira errática e pontual, tentou frear a expansão monetária, a verdade é que de maneira geral, o Fed atuou para expandir a base monetária e o crédito na economia americana durante quase todo o período dos anos 1920, (iii) a expansão de empréstimos para financiar exportações americanas, e (iv) a ajuda americana à volta do Reino Unido ao padrão ouro, com consequências novamente inflacionárias.
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Apesar de Rothbard constantemente classificar a década de 1920 como inflacionária, o nível de preços ao consumidor subiu pouco até 1925 e caiu pouco até 1929. Ou seja, do ponto de vista do consumidor, não houve inflação alguma. O argumento de Rothbard, pois, reside em apontar que a expansão da base monetária e do crédito (e o consequente efeito inflacionário) foi compensada por um forte aumento na produtividade, com efeitos deflacionários para o consumidor. Assim, a estabilidade do nível de preços para o consumidor apenas mascarou o boom, que se fez sentir principalmente nas indústrias de bens de capital e, notadamente, na própria bolsa americana4. Enquanto bens de capital tiveram seu nível de preços elevado em 160% no período, a bolsa americana quadruplicou de valor. Sem dúvida uma grande expansão.
A partir do crash de 1929, a narrativa de Rothbard fica substancialmente mais familiar, a exceção do fato de Rothbard atribuir a Hoover a paternidade do New Deal – e não a Franklin Delano Roosevelt (FDR), como é comum. Trata-se, na verdade, de uma bela crítica. Hoover gabou-se em seu último ano de mandato, dentre outras realizações, por ter garantido com suas intervenções a manutenção dos salários americanos entre os mais altos do mundo. Segundo Rothbard, um dos maiores “cantos da sereia” dentre as políticas anticíclicas é tentar segurar os salários altos “a força” o que gera apenas uma coisa: desemprego. Quando Hoover deixou a Casa Branca, o desemprego atingia 25% da população economicamente ativa dos EUA.
A frase com a qual iniciei este artigo, de que em 1929 “o que o capitalismo criou, o governo resolveu” resume o legado mais perverso da Grande Depressão. A partir dali, graças à habilidade política de um líder popular, FDR, e a um evento extremo e único, a Segunda Guerra Mundial, a solução Keynesiana emergiu como única abordagem válida às crises do capitalismo. A análise de Rothbard mostra o contrário: o governo criou a expansão insustentável que levou à crise, e a sua intervenção massiva na economia substituiu uma recessão curta e expurgatória por uma depressão longa e profunda.
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A história se repete. O Brasil também tentou o seu New Deal após 2008 apenas para ver a “marolinha” se transformar em uma hecatombe que, a partir de 2014, fez sua economia derreter e enfrentar a maior depressão desde…1929.
Talvez aqui valha apontar uma enorme diferença entre Brasil de 2008 e os Estados Unidos de 1929: Enquanto o período de expansão americano foi marcado por enorme ganho de produtividade, a expansão brasileira significou tudo menos isso. No afã de impedir a liquidação expurgatória, o Brasil surfou até onde pôde (i) o superciclo das commodities, (ii) o efeito deflacionário do dólar fraco5 e (iii) a expansão descontrolada da dívida pública. O resultado, nada surpreendente, é a emersão de um país fraco e combalido por uma enorme crise, caminhando a passos largos para a próxima. Enquanto não aprendermos, a história vai continuar a se repetir.
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Thomas Pfeferman é advogado e associado do Instituto de Formação de Líderes de São Paulo (IFL-SP).
Notas
1/Os indicadores econômicos da França, por exemplo, só iriam retornar aos níveis pré-1929 em 1950.
2/ Neste ponto, Rothbard separa a TACE de todas as demais escolas, uma vez que apenas a TACE enxerga os anos de expansão (boom) como negativos e pouco sustentáveis, razão pela qual inevitavelmente deverão ser seguidos por uma depressão (bust) para fazer o ajuste e liquidar o desperdício. Boa parte das demais escolas de economia enxergam a depressão como uma destruição desnecessária da “prosperidade” que a antecedeu.
3/ A Grande Depressão Americana. Pp. 97
4/ A Grande Depressão Americana. Pp. 164
5/ Uma interessante análise do papel do dólar na expansão da economia brasileira na primeira e na segunda década do século XXI é encontrada neste artigo: https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2190