Laurent Suaudeau: “Antes de ser chef tem que ser cozinheiro”

Um dos primeiros "cozinheiros" a ficar famoso no Brasil fala sobre a evolução da alta gastronomia, os novos chefs, os novos ricos e demonstra um certo desânimo com o futuro próximo do País que o acolheu.

Paulo Panayotis

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O enorme casarão da Rua Groenlândia, Jardim América, em São Paulo, parece resplandecer em um dia de céu muito azul. É junho. Véspera da Copa de 2018 mas não há festa nem bandeiras pelas ruas. O clima é misteriosamente morno em São Paulo. Encontro o “mestre” Suaudeau meio que sem querer. “Cheguei mais cedo do que esperava”, me justifico.  “Pouco trânsito, sabe? “Talvez seja a Copa do Mundo. Acho que todo mundo foi para Moscou”, dispara ele.
“En français, s’il vous plaît”
Bem humorado, sorriso discreto porém franco, Laurent Suaudeau veste um  também discreto avental branco de “cozinheiro”, como ele mesmo gosta de reforçar. Fala em francês ao celular enquanto diversos executivos esperam por ele no elegante jardim do classudo casarão que ele ocupa há décadas. Ali instalou a Escola Laurent Suaudeau. 

BRASIL: UM DELICIOSO ACASO!
Olhos pequenos extremamente perscrutadores, olhar inquiridor, este “decano” dos chefs franceses foi um dos primeiros – se não o primeiro – a transformar panelas em arte no Brasil. Nascido Laurent Roland Suaudeau no Vale do Loire, França, em 1957, deixou cedo Cholet, sua pequena cidade natal, para trabalhar com  Paul Bocuse, a lenda viva da época. “Acabei parando no Brasil totalmente por acaso” relembra nostalgicamente Suaudeau, olhos fixos em mim e memória ancorada no Rio de Janeiro do final dos anos 1970. “Bocuse me convidou para chefiar o restaurante Saint-Honoré, que funcionava no hotel Meridien, em Copacabana e eu aceitei”. Na época, aos 23 anos, trouxe nas malas os sonhos, a disciplina e os mistérios de uma escola gastronômica clássica francesa que, já naquele tempo, respeitava os produtos e a rigorosa hierarquia na cozinha. Fez escola. Formou dezenas de chefs. Mudou definitivamente o conceito de gastronomia no Brasil. “Naquela época praticamente não havia produtos importados, então tive que “sambar” para conseguir produtos com um mínimo de qualidade e constancia para alta gastronomia”.
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Restaurante Saint-Honoré: olhos no presente e memória no passado!

A CHAVE DO COFRE E DO CORAÇÃO
Ao longo destes 40 anos acumulou experiência, prêmios e amigos por onde passou. Misturou o sangue nordestino com a fleuma francesa quando se apaixonou por Sissi, uma piauiense que conheceu ainda no início de carreira no Rio de Janeiro. “Estava descendo de elevador do restaurante Saint-Honoré quando a porta se abriu e entrou a Dejacy. Olhei com muitíssimo interesse para aquela garota que, soube mais tarde, trabalhava no departamento de vendas do hotel Meridien”. E quem paquerou quem, pergunto eu ao chef Laurent. “Fui eu claro. No começo ela não me deu bola. Achava que um chef francês não queria nada sério com uma brasileira. Mas insisti e mostrei que era o contrário. Estamos juntos até agora. Ela hoje tem a chave do cofre e do meu coração. São meus dois amores: as panelas e a Sissi!”

“SEM APRENDIZ? TEM ALGO ERRADO AÍ, NON?” 
Abaixo, um pouco de como pensa e o que move este chef que é o ídolo de dez entre dez futuros candidatos ao show biz gastronômico via panelas. Avesso ao estrelato pelo estrelato, de uma personalidade explosiva que Paul Bocuse tentou domar em vão, o cozinheiro Laurent Roland Suaudeau já começa a entrevista entornando o caldo: “Sonho com o dia em que o indivíduo brasileiro faça as coisas acontecerem para que a coletividade se beneficie.  Veja por exemplo que hoje temos cerca de 40 chefs talentosos e promissores no Brasil. Nenhum deles tem um aprendiz. Porque? Tem algo de errado aí non? “
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“Sonho com o bem comum vencendo o individual” 

(InfoMoney) – O senhor sempre repete uma frase quando questionado sobre como anda a gastronomia no Brasil: Menos show e mais comprometimento. Por que?
(Laurent Suaudeau) – É positivo fazer show, ter boas relações com a mídia, tornar seu trabalho conhecido. Mas o que vejo hoje é muito investimento financeiro e pouco comprometimento dos novos chefs de cozinha. Muita gente abre o restaurante com investidores e dali a dois anos fecha. Abre para fechar. Os chefs têm que aprender a separar o sucesso pessoal do comprometimento profissional, com a classe. Além disso, não há comprometimento dos chefs, das autoridades, não há continuidade do trabalho. Na França isso acontece há séculos. Todos trabalham juntos para atingir o bem comum. E isso leva tempo se for levado a sério. Aqui isso começou a melhorar de uns dez anos para cá, mas ainda é muito incipiente.

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(InfoMoney) – Qual é o momento da alta gastronomia hoje no Brasil com crises institucionais, dólar nas alturas e, como o senhor diz, falta de comprometimento de todos os lados?
(Laurent Suaudeau) – Acho que  momento agora é de reformulação interna do conceito de gastronomia no Brasil. Os chefs mais destacados, que fazem sucesso lá fora inclusive, levam uma imagem positiva do Brasil lá para fora, mas isso não condiz com a realidade. Temos que mudar a legislação para passar, por exemplo, a produzir aves, frangos, patos, como incentivo à produção local. Essa é a tendência mundial. Aqui, quem produz alimentos, sobretudo carnes e aves, produz commodities, com o único objetivo de ganhar dinheiro, de lucro fácil.
Aí você tem produtos industrializados de baixíssima qualidade, com hormônios e outras coisas na produção. Por isso cada estado deve ter uma política de incentivo aos produtores locais. Não vejo isso nem acontecendo nem sendo planejado pelas autoridades. Creio em uma cozinha regional com liderança, com chefs que assumam a cultura de sua região para ajudar a melhorar a produção qualitativamente. A grande tendência mundial é trabalhar com produtos e produtores conhecidos e que estejam estabelecidos, no máximo, a 50, 60  quilômetros do restaurante. Isso gera cumplicidade que gera qualidade que gera constância nas relações profissionais. É inadmissível que com um país deste tamanho não tenhamos diversidade de produção de alimentos. Veja por exemplo nos pescados. Em todos os restaurantes de alto padrão se consome três tipos de peixe: robalo, linguado e salmão, sendo que este último é importado. Fico louco da vida quando um cliente me pergunta se o peixe que estou servindo tem espinhas ou tem gosto de peixe. Claro que pode ter espinhas. Claro que tem que ter gosto de peixe! É um peixe! No Brasil vendem tudo como commodities, padronizando por baixo, para dar lucro por cima e nada mais. Para mim isso não é só uma questão econômica mas cultural. Por isso sempre afirmo que, antes de ser chef, tem que ser cozinheiro!
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” Precisamos reformular o conceito de gastronomia no Brasil já!”

(InfoMoney) – O que mudou hoje no Brasil com essa nova geração de chefs?
(Laurent Suaudeau) – A juventude hoje em dia é muito mais antenada, tem muito mais informação. Mas cuidado porque informação não é cultura, não é sabedoria, não é prática. Tem que saber segurar um pouco essa turma, incentivar a capacidade de crescimento profissional deles e ao mesmo tempo orientar quando começam a confundir sucesso profissional com sucesso na cozinha, nas panelas. Além disso, os novos chefs – que vão brigar comigo quando lerem este artigo – não tem de maneira geral a capacidade de equilibrar consumo com conteúdo qualificado de produtos. Tem muito que aprender ainda mas o mundo atual não tem tempo para isso e cobra luzes, palanque, fama. Por isso repito sempre. Antes de ser chef tem que ser cozinheiro! Veja por exemplo meu ídolo e mentor Paul Bocuse: ele foi um gênio financeiro, criou um império mas, mais do que isso, criou uma cultura de alta gastronomia na França e no mundo. Por que? Porque nunca se esqueceu das panelas. Porque sempre foi um cozinheiro antes de ser um chef.

(InfoMoney) – Como avalia a relação custo-benefício hoje no Brasil? Quer dizer, frequentemente os restaurantes gastronômicos aqui costumam ser mais caros do que na França…
(Laurent Suaudeau) – Com o dólar a quatro reais, hoje voltou a ser barato, para os estrangeiros, comer em bons restaurantes no Brasil. Mas tudo por aqui conspira contra. Na maioria das vezes se paga muito caro pelo que se recebe. Aí podemos apontar uma série de razões: a mão de obra, os custos operacionais como energia, aluguel, que não param de subir, o custo Brasil, enfim, uma série de fatores. Alie-se a isso à pouca rotatividade que os bons restaurantes têm no Brasil justamente porque custam muito caro. Muitas vezes o custo operacional final por aqui fica em torno de 70 a 80%. Aí a conta não fecha. O chef, invariavelmente, tem que ganhar dinheiro com outras coisas que não cozinhar. Vai aparecer na TV, vai fazer palestra, enfim, tudo relacionado a cozinhar mas sem, efetivamente, meter a mão na massa, entende? Então no final, uma conta em um restaurante realmente gastronômico no Brasil fica astronômica. Principalmente se você somar a isso um bom vinho tinto francês que, por causa dos impostos, vai para as alturas… Isso sem falar que brasileiro rico sempre teve mais privilégios aqui do que, por exemplo, na Europa. Então quando ele vem ao seu restaurante é a única hora em que o privilégio não é dele. Ele pensa: “você tem o privilégio de me receber em seu restaurante”… 
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“Uma conta em um restaurante gastronômico no Brasil fica astronômica”

(InfoMoney) – Somos novos ricos na gastronomia?
(Laurent Suaudeau) – Nunca tinha pensado por este lado, mas podemos dizer que sim. Falta cultura gastronômica, falta cultura geral. Por exemplo: veja o caso da rolha (quando alguém leva um vinho de casa para o restaurante e paga uma taxa de consumo). No Brasil não é comum as pessoas levarem vinho de casa para o restaurante. Ainda têm vergonha. E quando levam, levam vinho de “marca”, de “grife”. Normalmente são vinhos caríssimos aqui no Brasil. E aí reclamam quando o maître cobra “rolha” pelo vinho. Aconteceu isso recentemente em um restaurante do Rio de Janeiro. O Ed Motta reclamou muito quando cobraram uma taxa por ele supostamente ter levado um vinho par tomar no restaurante. Os chefs reclamaram da atitude dele nas mídias sociais. Estão certos. Tiveram a coragem de confrontar um cliente. No Brasil, as classes privilegiadas ainda pensam assim: “Estou te fazendo um grande favor frequentando seu restaurante, viu? “. Me lembro que no restaurante Saint-Honoré do Meridien, no Rio, as pessoas, há quatro décadas, tinham uma grande cultura não somente sobre gastronomia, mas sobre o mundo. Eram elites ricas sim, mas também eram ricas intelectualmente, tinham gabarito intelectual, era uma elite vanguardista. As elites atualmente perderam esta cultura, este savoir-faire. Nós empobrecemos intelectualmente nestas quatro décadas que estou aqui no Brasil. É uma pena mas nós não decolamos como deveríamos ter decolado. Poderíamos ser hoje protagonistas não só na América Latina como no mundo todo. Mas creio também que este é um fenômeno mundial. Veja só o Trump se encontrando com o ditador da Coreia do Norte, o Kin Jong-un. Estamos bem servidos, non? Que mundo hã?!

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(InfoMoney) –  Qual é a importância da sua mulher, Sissi, na sua carreira, no seu sucesso?(Laurent Suaudeau) – Posso afirmar que 60% do meu sucesso são por causa dela. Hoje sou um pouco mais ponderado, não tenho mais tantos arroubos. Mas mesmo assim frequentemente falo o que me vem à cabeça sem pensar nas consequências nem para quem estou falando. Se é verdade o que digo, é verdade e ponto. E no mundo atual, onde as aparências valem muito mais do que as consistências você pode imaginar que isso não é uma das melhores coisas a fazer, oui? No caso da Sissi, ela sempre soube “colocar água no meu vinho na hora certa”, ou seja, sempre evitou que eu entornasse o caldo em muitas ocasiões importantes de minha vida profissional.
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Por que não somos protagonistas? Porque somos novos ricos na gastronomia!

(InfoMoney) – Projetos para o futuro? Algum novo restaurante?
(Laurent Suaudeau) – Sonhos tenho muitos. Mas restaurante de alto nível não quero mais. Você mais administra do que cozinha. Mas topo projetos de qualidade onde eu possa integrar minha equipe, gente que eu formei e que trabalha até hoje em projetos comigo. Sonho mesmo em finalizar e concretizar o Instituto Laurent Suaudeau e deixar alguma coisa para esse País que me recebeu de braços abertos e que hoje é também meu país junto com a França. Sou muito feliz em ensinar e continuar formando profissionais cada vez mais qualificados em minha área e voltados cada vez mais para o mercado brasileiro. Meu maior sonho é que exista uma formação democratizada e não concentrada como é hoje em dia. Temos que capilarizar cada vez mais o ensino para que ele atinja os pontos mais remotos deste País. Construir centros profissionais de formação e usar, principalmente, a sociedade multirracial brasileira em benefício dela própria, em benefício do bem comum. Sonho com o dia em que o indivíduo brasileiro faça as coisas acontecerem para que a coletividade se beneficie.  Veja por exemplo que hoje temos cerca de 40 grandes chefs talentosos espalhados pelo Brasil. Nenhum deles tem um aprendiz. Porque? Tem algo de errado aí, non? 

Um pouco mais de Laurent Suaudeau

Bebida : vinho tinto
Comida : simples porém rigorosamente bem feita
Perfume: Guerlain
Produto: Caju. É como o brasileiro: tem que conhecer para gostar (risos)
Filme: Perfume de mulher. Choro com o discurso final do Al Pacino
Sonho: Consolidar o Instituto Laurent Suaudeau
Pesadelo: Guerra no mundo
O mundo hoje: Em constante e rápida transformação
Esporte: Pedalar. Adoro andar de bicicleta
Religião: Sou católico, porém protestante. Sou mais Calvino do que Marx
Chef internacional: Paul Bocuse, claro!
Arrependimento: Não ter ido trabalhar nos EUA. O que eu teria feito?
Um vício: Dois: minhas panelas e a Sissi, nesta ordem
Uma pirraça: Parar? Nem pensar!

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O QUE MOVE LAURENT SUAUDEAU

Formar pessoas. Melhorar a qualidade da gastronomia brasileira e mundial.
Não sou uma pessoa fácil de conviver e muito menos de colocar água no meu vinho na hora certa. Ainda explodo de vez em quando: menos do que antes e mais do que gostaria. Sei que a forma como eu falo por vezes choca e soa arrogante mas é a forma como eu consigo expressar meu raciocínio. Não penso se vou magoar alguém. Sou um cara franco, verdadeiro. Até hoje falo tudo o que penso na cara! Paul Bocuse me dizia que “você não é um sujeito fácil de conviver então, para vencer, você deve deixar de lado sua rebeldia”, repetia ele sempre. Nunca deixei. Até porque, penso eu, nunca conheci ninguém rebelde que não tenha bom coração. 

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Jornalista Paulo Panayotis e Laureant Suaudeau após a entrevista: tietando!

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