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No item anterior deste blog mencionei o livro de Alain Peyrefitte, publicado no Brasil com o título “A Sociedade de Confiança”, É uma esplêndida obra de referência. Nela, o intelectual francês e homem de larga experiência política (onze vezes ministro de Estado) apresentou dados copiosos para embasar a suas convicções de como teriam ocorrido o desenvolvimento europeu e a estruturação das sociedades naquele continente. No conjunto, ressalta a proeminência da “confiança”, ingrediente essencial para o crescimento das sociedades, para a ação cooperativa entre os agentes econômicos e para o comportamento proativo entre os cidadãos e suas instituições.
Mais modernamente, parte desse conceito tem sido designado pelo termo “Capital Cívico”, para indicar “o estoque de crenças e valores que estimulam a cooperação entre as pessoas e a estruturação das sociedades com base na confiança mútua entre os cidadãos, na segurança das avenças e na eficiência confiável das instituições”. Esse é o ambiente cuja sustentação perene garantirá a segurança das sociedades, o trato cooperativo e confiável entre as pessoas, a melhoria do padrão ético geral e o progresso econômico de todos. Em resumo, segundo os expoentes dessa doutrina, quanto maior for o Capital Cívico de uma nação e quanto mais depressa ele crescer, maior nível de riqueza, de prosperidade, de segurança e de bem-estar será alcançado por essa mesma nação.
Em artigo recente, o renomado economista André Lara Resende (ex-presidente do BNDES e um dos responsáveis pela concepção do bem-sucedido Plano Real) voltou ao tema com interessantes abordagens registradas sob o título “Corrupção e Capital Cívico”. Algumas delas ganham importância especial no contexto da crise econômica e política que assola o país com o seu clima de incertezas e com a desorientação geral dos nossos dirigentes políticos. De fato, no momento em que mais precisamos de lideranças confiáveis, de segurança para os consumidores, de confiança entre os investidores, e de um ambiente negocial eficiente e cooperativo, estamos correndo justamente na direção oposta, ou seja, estamos assistindo o derretimento acelerado do pequeno Capital Cívico que havíamos acumulado. Temos que inverter esse processo. E o mais rapidamente que conseguirmos, mesmo na ausência de grandes lideranças políticas que pudessem empolgar a nação. Para tanto, temos que lutar por princípios, buscando consolidar a ética e a lisura em todos os mecanismos de gestão do estado. Seria um bom começo.
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Do artigo já mencionado, um trecho em especial merece ser reproduzido, pela forma com que o autor distingue comportamentos criminosos circunstanciais de princípios que poderiam impedi-los, já que pressupõe a eterna capacidade dos indivíduos para racionalizar as atitudes, seja evitando rótulos e enquadramentos pejorativos ou socialmente repulsivos, seja justificando a nobreza dos fins: “A propensão a agir incorretamente depende também da nossa capacidade de racionalizar. Se formos capazes de justificar a desonestidade somos muito mais propensos a agir de forma inapropriada. Isso vale tanto para atos mais corriqueiros de incorreção, como também para os mais graves. Roubos, assaltos, até mesmo assassinatos, podem ser cometidos de forma fria, por pessoas que se consideram honestas, desde que em nome de uma causa. O caso de políticos que roubam para o partido ou para financiar campanhas eleitorais, nunca para o seu enriquecimento, é exemplar da necessidade de racionalização. Os estudos mostram que quando a desonestidade pode beneficiar pessoas do nosso grupo ou até mesmo desconhecidos, a propensão à desonestidade aumenta. Uma vez encontrada a justificativa nobre, a racionalização, é possível ser desonesto e manter a autoestima. É o efeito Robin Hood, mas uma vez rompida a barreira psicológica, passa-se mais facilmente para a desonestidade aberta. Quando passamos a nos ver como desonestos, perde-se o pudor. Se esse for o comportamento disseminado entre os nossos pares, tudo se torna ainda mais natural”. Em resumo: não existe criminalidade virtuosa. Todo crime é crime e Robin Hood também foi um fora-da-lei. Vamos consolidar o princípio que não há justificativa para o crime, pequeno ou grande, rejeitando todos e dando fim à sensação geral de impunidade. E, com isso, resgatarmos parte do Capital Cívico erodido na crise.