Campo de batalha fiscal entre governadores migra do ICMS para o Conselho Federativo

Estudo divulgado pela Febrafite calcula que, só em 2023, renúncia de ICMS ligada à guerra fiscal deve alcançar R$ 100 bilhões

Roberto de Lira

(Shutterstock)
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Quando se fala que a reforma tributária vai acabar com a guerra fiscal entre os Estados, sempre fica a dúvida sobre qual o volume de recursos que os governadores estariam abrindo mão todos os anos na tentativa de atrair ou manter empresas dentro de seus territórios. Embora a tarefa não seja fácil, dada a baixa transparência dessa perda de arrecadação, a Associação Nacional das Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite) estima que são esperados ao menos R$ 100 bilhões de renúncia de ICMS só em 2023.

A conta total da renúncia ao imposto estadual entre todas as unidades federativas – feita a partir dos projetos de lei de diretrizes orçamentárias – é de R$ 228 bilhões, ou 31% da receita projetada para este ano. Porém são excluídos da conta subsídios que não têm relação com a guerra fiscal, como convênios firmados no âmbito do Confaz, como os relativos à desoneração de cesta básica, hortifrutigranjeiros, insumos agropecuários e máquinas e implementos agrícolas, por exemplo.

A conta de R$ 100 bilhões provavelmente está subestimada porque há diferentes metodologias de cálculo e de canais de transparência entre os Estados. No entanto, Rodrigo Spada, presidente da Febrafite, diz que, independentemente do valor real, a principal questão da lógica econômica é que o benefício fiscal, além de tirar arrecadação, distorce a concorrência.

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“Isso não é bom numa economia de mercado porque a acaba perdendo produtividade. As empresas têm que ganhar mercado pela competitividade, pela eficiência e não por distorções como o benefício fiscal que, na lógica internacional, não se sustenta”, defende.

Por essa lógica distorcida, a empresa se instala em um lugar menos eficiente, que tem piores condições logísticas, de mão de obra, e com problemas de distância das matérias-primas, apenas porque tem o benefício fiscal. E numa economia globalizada, esse peso da ineficiência é agregado ao valor do produto, fazendo no fim com o Brasil perca em termos de competitividade no mercado internacional.

Paulo Gala, economista-chefe do Banco Master concorda que esse aspecto de ganho de produtividade deve ser levado em consideração da defesa da reforma. “Ainda tem muita decisão de localização de fábrica só para fazer arbitragem tributária, ou arbitragem fiscal. Monta-se uma fábrica num lugar completamente distante do centro consumidor, ou que logisticamente não faz sentido. Mas o benefício fiscal é tão grande que acaba compensando”, comenta.

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Spada também comenta que, uma vez que esses benefícios são concedidos por todos os estados, em menor ou maior magnitude, existe a avaliação de que a guerra fiscal já teria deixado de produzir impacto positivo sobre o desenvolvimento, mesmo em estados mais pobres, um dos discursos mais usados por quem ainda defende a prática.

“Quando se pratica (a guerra fiscal) isoladamente, ganha mercado. Mas quando a lógica começa a se instalar de forma sistêmica, com rodadas sucessivas de rodos os Estados praticando, todo mundo está perdendo. E quem perde é a população. O interesse que tem que ser visto é o social”, afirma.

Gala aponta um outro problema trazido pelos subsídios exagerados, que é escondes o próprio potencial local para a atração dos investimentos. “Teve muita indústria que foi para o Centro-Oeste e tem toda uma discussão de até que ponto elas foram para lá por conta de incentivo fiscal ou pela própria expansão do agronegócio”, pondera.

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Daí é considerado compreensível que vários governadores tem mostrado resistência às propostas da reforma, por temerem uma suposta perda de autonomia dos Estados, um processo que começou nos anos 1960 e que foi acelerado a partir da aprovação da Constituição em 1988.

Spada diz entender isso pela lógica dos governadores, que é essencialmente política. “O governador está preocupado em se reeleger. E o que ele faz com o benefício fiscal é comprar empregos. Não pode falar de uma outra forma. Está achando que, com aquilo, vai estar criando ambiente favorável para se reeleger”, comenta.

Perdedores e ganhadores

É nessa lógica que tornou preponderante as imagens de perdedores ou ganhadores que os mandatários dos Estados ganharam ao longo das últimas décadas nesse ambiente de disputa pela instalação de indústrias.

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O caso mais notório ocorreu em 1999 quando a Ford desistiu de um investimento no Rio Grande do Sul e foi se instalar em Camaçari, na Bahia, em busca de mais benefícios tributários. A conta política dessa perda caiu no governador gaúcho da época, o petista Olívio Dutra. Em 2021, quando a Ford deixou de produzir veículos no País, a planta da Bahia gerou uma perda estimada de 60 mil empregos diretos e indiretos.

Gala afirma que essa é consequência ruim de se criar incentivos não-econômicos. “Cria-se um incentivo gigantesco, ela se instala lá e depois que acaba o incentivo ou, por outro motivo, vai embora e não cria laços locais, conexões tecnológicas, nada disso”, destaca.

Situações assim tendem a ser equacionadas com reforma tributária, cujo texto foi aprovado pela Câmara em julho e que está em tramitação no Senado. Com a simplificação proposta, para unificar a tributação estadual e a municipal num só imposto sobre bens e serviços (IBS), os Estados vão perder sua principal munição nessa batalha, que a definição sobre as alíquotas do ICMS.

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Autonomia em risco?

Sobre se essa mudança tende a reduzir a autonomia dos estados, Gala e Spada têm um leve discordância. Para o economista-chefe do Banco Master, está na própria natureza do texto tirar um pouco da força dos Estados. ““O pacto federativo perde força, num certo sentido. É isso que os governadores vão tentar mexer um pouco no Senado agora”, comenta.

O presidente da Febrafite, no entanto, considera que os Estados não estão perdendo autonomia na reforma tributária porque será mantida a possibilidade de eles definirem sua alíquota de IBS.

“Hoje, nesse ambiente do nosso sistema tributário erodido de guerra fiscal não dá para falar em autonomia. Porque não pode ser uma autonomia para lesar a sociedade. Tem que ser aderente aos princípios pegados na Constituição Federal. Tem limites, autonomia não é uma soberania”, afirma.

Para ele, o atual sistema tributário é que tem conspirado contra o pacto federativo, colocando irmãos contra irmãos, numa guerra fratricida. “O modelo tributário da reforma tributária cria nova lógica de fiscalização, de cooperação de compartilhamento de cadastros e de bases. Isso vai ser muito bom para os contribuintes e para o Brasil”, defende.

Voz no Conselho

Sobre a atual disputa sobre representação dentro do futuro Conselho Federativo, um colegiado que será criado para gerir os recurso do IBS, é esperado que o Senado faça mudanças na governança estabelecida no texto aprovado na Câmara.

A primeira proposta era que o Conselho teria votação e aprovação pela maioria dos Estados, mas isso desagradou aos Estados do Sul e do Sudeste, que se sentiram com sub-representação em relação ao Norte e ao Nordeste, que têm mais votos.

Mas por pressão de governadores como o de São Paulo, Tarcísio de Freitas, o texto deu mais voz aos Estados mais desenvolvidos economicamente, ao prever a necessidade do aval do grupo de unidades federativas com 60% da população.

“Diferente da Câmara, que tem uma proporcionalidade de população para a representação, no Senado estão mais acostumados com essa lógica igualitária entre os Estados. Acho que deve amenizar um pouco essa governança no critério populacional”, aposta Spada.

“No Senado, cada Estado tem o mesmo peso dos outros nos votos, algo bem diferente do que aconteceu na Câmara. A representação de poder é bem distinta. Os Estados pequenos e com economia menor, do Norte e Nordeste, têm a mesma força no voto que os grandes estados do Sul e do Sudeste”, opina Gala.

Sobre o futuro, Spada acredita que a reforma deve favorecer investimentos mais direcionados às características de caga região e que isso será propiciado também com a distribuição dos R$ 160 bilhões previstos para o Fundo de Desenvolvimento Regional, que está sendo criado.

“O dinheiro que vai para as regiões menos favorecidas. Esses Estados vão receber esse dinheiro para atrair investimentos, vão poder fazer infraestrutura. E, se quiserem dar dinheiro para uma empresa se instalar, vão ter que passar pelo Parlamento. Então existem os catalizadores e os estados menos desenvolvidos vão ter mais recursos”, afirma o presidente da Febrafite.

Essa transparência pode ajudar até a má fama dos subsídios, diz Gala. “É precisa tomar cuidado para não demonizar os subsídios. Se atrelados a contrapartidas específicas, os subsídios são importantes, especialmente na inovação, transição ambiental e energética. Basta ver o que está acontecendo nos EUA hoje”, compara.