Fabiano Nogueira tem 47 anos, é auxiliar de zelador de um prédio residencial no Brooklin e mora no Grajaú, ambos bairros na zona sul de São Paulo, e resolveu fazer um seguro quando comprou um carro mais novo, um Polo. Contratou um que era um terço mais barato, por recomendação do irmão, direto com um corretor. O problema surgiu quando chegaram os documentos na sua casa: ele descobriu que na verdade não tinha contratado um seguro para o seu carro. Em vez disso, tinha se associado a uma cooperativa de proteção veicular.
“Foi com um corretor, tudo pelo WhatsApp. Foi tudo maravilhoso, mas depois que chegou a apólice em casa e eu conversei com o meu irmão, entendi que não era um seguro”, afirma Fabiano, que optou pela proteção veicular porque acreditava ser um seguro e por causa do preço: “Para a região onde eu moro, era R$ 1,5 mil pela Azul e eu paguei menos de R$ 1 mil”.
As Associações de Proteção Veicular (APVs) exploram uma brecha na legislação para oferecer um serviço que se assemelha a um seguro, mas não é um: elas não são fiscalizadas pela Susep (Superintendência de Seguros Privados) e se baseiam no cooperativismo, que tem uma legislação própria.
A pessoa que “contrata” o serviço na verdade assina um contrato de responsabilidade mútua, vira um associado e passa a dividir o risco com os demais membros da associação. “É um ‘seguro pirata’, de empresas que não são fiscalizadas pela Susep e não têm reserva técnica [dinheiro que as seguradoras têm de separar para arcar com os sinistros dos clientes]”, afirma Manes Erlichman, vice-presidente e diretor técnico da Minuto Seguros. “Você tem de saber de onde você está contratando o seguro.”
O tamanho do problema
A FenSeg (Federação Nacional de Seguros Gerais) estima mais de 600 APVs pelo Brasil e que elas reúnam cerca de 4,5 milhões de associados atualmente — para efeito de comparação, no mercado regulado cerca de 30% da frota tem seguro no país (quase 20 milhões de veículos). Como a proteção veicular não é uma atividade regulada pela Susep, não há números oficiais sobre o setor.
A federação calculou em 2019 que a perda fiscal direta do governo era de R$ 1,2 bilhão por ano apenas com impostos e tributação sobre o lucro e de até R$ 2,5 bilhões se considerados outros impactos, como impostos sobre sinistros, peças e fornecedores.
“O seguro é uma relação de consumo prevista no Código Civil e amparada pelo Código de Defesa do Consumidor. Ao contratar uma apólice emitida por seguradora legalmente habilitada e supervisionada pelo órgão regulador, a Susep, o segurado transfere o risco predeterminado na apólice. A empresa fica responsável pela indenização em caso de sinistro”, afirma Marcelo Sebastião, presidente da Comissão de Seguro Auto da FenSeg.
“Só que no caso da proteção veicular não há relação de consumo. O associado assina um contrato de responsabilidade mútua e divide o risco com os demais membros da associação, que não é fiscalizada por nenhum órgão regulador. Em caso de prejuízo, é feito um rateio entre todos. Nessas circunstâncias, o pagamento da indenização depende do caixa da associação, o que significa um futuro incerto — e por vezes oneroso — para os associados, que não possuem garantias objetivas e regulamentadas”, diz Sebastião.
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Processos judiciais
O porta-voz da FenSeg diz ainda que “cada associação tem seu próprio estatuto, sem fiscalização de espécie alguma”, e “são dispensadas de constituir reservas técnicas, o que compromete a sua capacidade de honrar os pagamentos de indenizações de qualquer natureza”. “As associações são alvo de inúmeras ações judiciais, provocando a quebra de confiança no mercado como um todo. É necessário que essas entidades se enquadrem em regras de solvência e formem reservas técnicas para seguir operando”.
Procurada pelo InfoMoney, a Susep se limitou a dizer que “proteção veicular não é um produto de seguro, não sendo atividade regulada”. “Antes da contratação de qualquer produto de seguro, a Susep orienta que seja realizada uma pesquisa sobre a empresa para certificar que ela é autorizada pela autarquia no seguinte endereço: http://www.susep.gov.br/menu/informacoes-ao-publico/mercado-supervisonado/entidades-supervisionadas.
“A atuação dessas associações é objeto de amplo e firme combate, pela Susep, por meio do ajuizamento de ações civis públicas”, afirmou a superintendência em nota. A entidade disse que “já ingressou com 320 ações judiciais para interromper as atividades das associações, tendo alcançado resultado exitoso na maioria destas”, mas não explicou como há mais de 600 APVs pelo Brasil e cerca de 4,5 milhões de associados se os processos têm sido “exitosos”.
Troca pelo seguro
O próprio irmão de Fabiano, que recomendou a proteção veicular a ele, teve problemas com o serviço: “Eu não precisei usar, mas meu irmão teve uma colisão e enfrentou problema, porque quiseram colocar peças não originais no carro dele.”
Após um ano, quando chegou a hora de renovar a proteção veicular, Fabiano não teve dúvidas: desta vez contratou um seguro. “A questão financeira é importante, e [a proteção veicular] é mais em conta, mas você não fica 100%”.
O auxiliar de zelador teve por três anos um seguro da Azul, até o fim de 2021, mas não renovou a apólice por uma questão financeira. “Hoje eu estou sem seguro. Minha mulher não está trabalhando e minha filha está na faculdade, então a gente tem de cortar algumas coisas. Se eu não estiver fazendo bico, não consigo pagar o seguro.”
Problema crescente
Jaime Soares, diretor-executivo de auto da Porto (que é dona da Azul e recentemente tirou o “Seguros” do nome para mostrar que está diversificando suas linhas de negócio), diz que a proteção veicular “é uma questão que preocupa, porque vem crescendo ao longo dos anos”. Ele diz que cerca de 10% das pessoas entrevistadas pela seguradora dizem em pesquisas que têm seguro, mas na verdade se associaram a APVs. “Há 10 anos isso era muito menor.”
“Elas [as associações] não fazem reserva técnica, não têm órgão regulador, não colocam peças originais no veículo”, enumera Soares. “Elas vêm com um custo menor, mas sem nenhuma rastreabilidade. A pessoa acha que está atendida, mas quando precisa não tem o sinistro atendido. É um mercado paralelo não regulamentado. Mas o cliente não tem de saber nada disso. Ele tem de ir no corretor e ser apresentado a apenas produtos regulamentados.”
Contra-ataque
A Porto, que é líder no segmento auto, está tentado crescer sobre esse mercado não-regulado, para atender a pessoas que atualmente não têm seguros. Pensando nisso, lançou em uma prova do líder do último BBB o seguro Azul por assinatura, que o cliente contrata por mês e tem menos coberturas, mas a empresa diz ser de 20% a 30% mais barato.
“Em uma noite a gente vendeu o equivalente a um mês inteiro”, diz Roberto Santos, CEO da Porto. O executivo afirma que o fato de o seguro para carros ser pouco penetrado (só 30% da frota brasileira é segurada) é um “fator interessante” e o produto foi criado exatamente “para trazer pessoas que não estão no mercado de seguros”. “É uma estratégia de penetrar em uma camada que não compra seguro, para atender a camada que acha que está desamparada”.
Fabiano, que é são-paulino fanático e vai a quase todos os jogos no Morumbi, exemplifica qual é a diferença de ter ou não um seguro para o seu Polo 2006. “Eu vou algumas vezes de carro para o estádio, mas ultimamente estou evitando. A sensação [com seguro] é: meu carro está com seguro, então se acontecer alguma coisa eu sei que vou ter dor de cabeça, mas terei respaldo. Essa sensação de não ter [o seguro] é o que me faz não ir de carro, porque você estaciona na rua e pode acontecer alguma coisa. Graças a Deus no trabalho e em casa eu consigo deixar na garagem.”
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