Os negócios públicos e a pandemia de coronavírus: como ficam os contratos?

Há uma série de medidas excepcionais para enfrentar a situação de anormalidade - e isso pode mudar a relação entre contrato e contratante

Angélica Petian

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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores.

Angélica Petian é doutora em Direito e sócia do Vernalha Guimarães e Pereira Advogados

A pandemia reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que acometeu todos os continentes e já conta com mais de 500 mil pessoas infectadas ao redor do mundo, atingiu o Brasil e fez com que os governos municipais e estaduais adotassem medidas restritivas de circulação de pessoas, funcionamento de estabelecimentos e prestação de serviços públicos, atingindo diretamente direitos individuais e a liberdade econômica. Medidas austeras excepcionais para enfrentar uma situação de anormalidade, que pode se agravar ainda mais.

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Para tentar conter a rápida e crescente onda de contágio, muitas normas foram impostas, disciplinando relações jurídicas nos mais diversos campos. Para auxiliar o cidadão no acompanhamento das inovações legislativas, o Governo Federal compilou-as em um único canal, atualizado diariamente (http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-covid-19).

Não obstante a valia das novas normas para enfrentar alguns dos efeitos da pandemia, deve-se atentar para o regime jurídico já existente, que apresenta soluções para muitas das discussões que ocorrerão.

No campo dos negócios públicos, a Administração fica autorizada, pela Lei n.º 13.979/20, com redação dada pela Medida Provisória nº 926/20 a dispensar a licitação para aquisição de bens, serviços (inclusive de engenharia) e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública.

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Novas contratações poderão adotar o regime excepcional, cujos requisitos estão dispostos na citada lei. Mas, e os contratos em andamento?

A exemplo daqueles que a Administração celebrou com particulares para a execução de obras públicas ou para a prestação de serviços continuados ou, ainda, aqueles pelos quais delegou a um privado, em regime de concessão,  a execução indireta de serviço público?

Todos esses ajustes, que podem ser genericamente denominados como contratos administrativos, celebrados com empresas privadas ou entidades do terceiro setor, podem se sujeitar a regimes jurídicos diversos, que disciplinarão as situações ordinárias e extraordinárias havidas durante a execução contratual a partir das especificidades de cada lei de regência.

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Qualquer que seja a natureza do ajuste, nesse momento excepcional pelo qual passa o País em razão da pandemia do novo coronavírus, ele poderá ser fortemente impactado, seja por determinações legais, administrativas ou judiciais, que alterem diretamente a forma de execução do contrato, seja por fatos decorrentes da pandemia que, por mudarem o padrão de comportamento das pessoas, afetam a sua normal operação.

Sem adentrar nas especificidades de cada modelo contratual, há alterações possíveis, que estão sob o regime geral de contratações, aplicável inclusive subsidiariamente, aos demais contratos específicos, que podem ser antecipadas.

A excepcionalidade trazida pela pandemia, que tem gerado a suspensão de dadas atividades, impactando diretamente na livre circulação de pessoas e mercadorias entre países, pode acarretar o descumprimento involuntário de obrigações contratuais o que geraria, em situações de normalidade, a caracterização de infração administrativa. Isso ensejaria a abertura de processo administrativo sancionador, seguido de possível aplicação de sanção contratual, fundamentada na inexecução do ajuste, tal como prescrito pelo art. 87 da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos.

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No entanto, para momentos de anomalia, com a que presenciamos agora, o ordenamento jurídico estabelece comando especiais, que flexibilizam a aplicação de regras legais e contratuais, permitindo que o antes pactuado seja adaptado à nova situação.

Em se tratando de contratos públicos, a Lei nº 8.666/93, independentemente da prescrição contratual, estabelece alguns mecanismos que poderão ser utilizados pelos contratados para endereçar o cumprimento das obrigações sem que reste configurada a inexecução parcial do ajuste. O ponto mais importante é a demonstração da impossibilidade de cumprir a obrigação contratual em decorrência da situação ocasionada pela pandemia. Ou seja, há de ser demonstrado o nexo de causalidade que isente a responsabilidade do contratado.

Outro ponto importante, é a potencial impossibilidade de cumprimento das obrigações nos prazos inicialmente pactuados. Nessa hipótese, a Lei admite a prorrogação dos prazos de início de etapas de execução, de conclusão e de entrega diante da superveniência de fato excepcional ou imprevisível, estranho à vontade das partes, que altere fundamentalmente as condições de execução do contrato (art. 57, § 1º, II).

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Para que a prorrogação do prazo seja possível e não acarrete a imposição de penalidades ao contratado, ele deverá comunicar o fato à Administração contratante e demonstrar o liame jurídico entre a pandemia e a impossibilidade de cumprimento de sua obrigação no prazo inicialmente estabelecido, requerendo a dilação pelo período necessário para o cumprimento do dever ou, em caso de impossibilidade, a suspensão da execução contratual, até a normalização da situação.

A sustação do contrato terá cabimento quando a pandemia impedir o cumprimento das obrigações principais, que afetem diretamente a execução material do ajuste. Nesse caso, quando da normalização da situação, o cronograma de execução será prorrogado automaticamente, pelo mesmo período da paralisação, conforme preceitua o art. 79, § 5º da Lei n.º 8.666/93, tudo em prestígio à continuidade do contrato.

A interpretação dos diversos dispositivos da Lei n.º 8.666/93 levam à conclusão de que a contaminação em massa causada pelo coronavírus se caracteriza como fato extraordinário, imprevisível e alheio à vontade dos contratantes, a ensejar a excludente da responsabilidade, tal como previsto pelo art. 393 do Código Civil, que configura a força maior.

Por fim, se o comprometimento da execução do contrato for tamanho que impeça sua recuperação, é possível que as partes decidam, amigavelmente, pela rescisão do contrato, com fundamento no art. 78, XVII, da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos, que  prescreve como causa da interrupção prematura do ajuste a ocorrência de caso fortuito ou de força maior, regularmente comprovada, impeditiva da sua  execução.

Nessa hipótese, em que a rescisão se dá sem que haja culpa do contratado, a lei lhe garante o ressarcimento dos prejuízos regularmente comprovados que houver sofrido, tendo ainda direito à devolução de garantia, pagamentos devidos pela execução do contrato até a data da rescisão e pagamento do custo da desmobilização.

O enfrentamento de qualquer dessas hipóteses, oriundas do momento crítico da saúde pública mundial, poderá ensejar a alteração do contrato administrativo para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro na situação em que o contratado for indevidamente onerado em razão da ocorrência de fatos imprevisíveis, como são os eventos de força maior, configuradores de álea econômica extraordinária e extracontratual.

Em qualquer das situações expostas, caberá ao contratado solicitar a providência à Administração Pública, deduzindo as razões para reconhecimento de seu direito, competindo-lhe a demonstração do nexo causal entre os efeitos da pandemia e a impossibilidade de cumprir o contrato nos termos inicialmente pactuados.

A seu turno, caberá à Administração analisar os requerimentos em prazo razoável e decidir de forma motivada, atentando-se para o dever de considerar as consequências práticas da decisão, conforme imposição da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.

Quando da análise do requerimento feito pela contratada, a Administração terá que sopesar qual a decisão é mais eficiente, a partir de critérios econômicos e sociais. Portanto, terá que demonstrar que a opção pela suspensão de determinado contrato com a posterior retomada, que faz incidir o direito da contratada receber pelos custos de desmobilização e posterior mobilização, é a melhor quando cotejada com a hipótese de rescisão do contrato, por exemplo.

Por fim, a decisão administrativa não poderá estar fundamentada em valores jurídicos abstratos, já que sua validade estará condicionada à consideração dos efeitos práticos da decisão à luz das possíveis alternativas.

O momento é desafiador para contratantes e contratados e por isso a formalização de todas as determinações e suas respectivas consequências ganha importância fundamental. Ademais, todos esses negócios serão futuramente examinados pelos órgãos de controle, que perquirirá a razão da opção por cada alternativa em detrimento das demais.

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Angélica Petian

Pós doutora em Direito pela USP e integrante da Comissão de Infraestrutura da OAB-SP. Advogada especialista em infraestrutura e sócia do escritório Vernalha Pereira.