O que foi o Plano Marshall, e por que o conceito ressurge com o coronavírus

Entenda o que foi o Plano Marshall, e qual foi seu papel para a recuperação da economia europeia nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial.

André Cabette Fábio

(Shutterstock)
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Conforme países restringem a circulação de trabalhadores, bens e serviços em consequência do novo coronavírus, a expectativa é de que populações e economias ao redor do globo sejam fortemente golpeadas.

Como reação, o secretário geral da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) Ángel Gurría conclamou que países adotem planos coordenados contra a crise.

“Precisamos de liderança, conhecimento e um nível de ambição similar ao Plano Marshall”, afirmou, em referência ao bilionário programa de ajuda financeira oferecido pelos Estados Unidos a países europeus com o intuito de reavivar suas economias e garantir estabilidade social após a Segunda Guerra Mundial.

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A ideia de conceder incentivos do governo para lidar com a crise do novo coronavírus vem sendo defendida em várias partes do mundo, inclusive por empresários brasileiros, que também repetem a analogia com o Plano Marshall, um programa histórico que se tornou sinônimo de ação governamental coordenada.

Por aqui, os empresários Guilherme Benchimol, fundador e CEO da XP Inc., e André Street, fundador da empresa de pagamentos Stone, fizeram o mesmo apelo recentemente.

Qual foi o contexto do Plano Marshall

A Segunda Guerra Mundial se encerrou com um saldo de 40 milhões de pessoas mortas no continente europeu, vítimas de violência, fome e doenças.

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O conflito foi marcado por bombardeios estratégicos de larga escala, que destruíram parques industriais inteiros, abalando a capacidade produtiva europeia.

Em 1946, a produção industrial da Europa Ocidental equivalia a 60% do nível anterior ao conflito. Em 1947, chegou a 70%.

No setor agrícola, a safra de 1945 e 1946 de França, Bélgica, Alemanha e Itália mal chegava à metade do nível pré Segunda Guerra Mundial.

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Tradicionalmente, a Europa exportava ao mundo produtos industriais, e adquiria produtos não industrializados. Mas o novo quadro colocou esse sistema em xeque.

A redução no acesso à comida do pós guerra era acompanhada pelo aumento populacional -mesmo com as mortes, a população europeia cresceu 20 milhões desde 1938.

Na Alemanha ocupada pelas potências vencedoras do conflito, esse quadro contribuiu para anos de racionamento.

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O continente também sofria com forte inflação. Na Itália, os preços subiram 35 vezes em relação ao nível anterior à guerra.

Apesar do enorme custo populacional de cerca de 20 milhões de seus habitantes, a União Soviética foi essencial para a vitória no conflito, e se consolidou, ao lado dos Estados Unidos, como uma das duas grandes potências do pós-guerra.

Em paralelo, partidos comunistas ligados à União Soviética se fortaleciam na Europa Ocidental, em especial na Itália e na França, que viviam protestos de trabalhadores.

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O temor de uma guinada política comunista, e a má experiência com os ganhos após a Primeira Guerra contribuíam para que banqueiros americanos ficassem reticentes em realizar empréstimos privados aos países europeus, dificultando sua recuperação econômica.

A Doutrina Truman

Pouco menos de dois anos após o término da Segunda Guerra Mundial, a relação entre Estados Unidos e União Soviética voltou a se deteriorar, revertendo a aproximação que os dois países haviam estabelecido durante o conflito.

As potências voltaram a disputar influência, promovendo respectivamente o capitalismo e o comunismo, que ganhava terreno na Europa Ocidental em situação de penúria.

Em março de 1947, o presidente Harry Truman discursou ao Congresso dos Estados Unidos, defendendo que o país reorientasse sua política externa, e interviesse sobre a situação política de dois Estados diretamente afetados pelo conflito: Turquia e sua vizinha Grécia.

A Grécia travava desde 1946 uma guerra civil contra o braço armado do partido comunista do país. Truman afirmou que, caso o governo grego perdesse, a guinada política poderia afetar também a Turquia e, consequentemente, o Oriente Médio, área de influência que vinha sendo disputada com a União Soviética.

O presidente avaliava que o risco tendia a se agravar em um curto período, à medida que o Reino Unido planejava cortar o auxílio econômico aos dois países no final do mês. Truman pediu que o Congresso aprovasse o envio de ajuda civil e militar, além de ajuda financeira de US$ 400 milhões aos dois países.

Em seu discurso, propôs uma nova linha para a política externa americana, que ficaria conhecida como Doutrina Truman: “Os Estados Unidos devem ter como política apoiar os povos livres que estão resistindo a tentativas de subjugação por minorias armadas ou por pressões externas. Acredito que nós devemos auxiliar os povos livres para conduzirem seus próprios destinos”.

Com o início da Doutrina Truman, os Estados Unidos passaram a sistematicamente intervir para se contrapor à expansão da influência geopolítica da União Soviética.

Por esse motivo, o discurso de março de 1947 é utilizado por muitos historiadores para marcar o início da Guerra Fria. Ele foi também um passo inicial da política americana de impulsionar o fortalecimento político, econômico e militar da Europa no pós guerra.

A implementação do plano

No início de junho de 1947, o secretário de Estado americano, general George Marshall, realizou um discurso na Universidade de Harvard, em que ofereceu ajuda dos Estados Unidos para a recuperação da economia europeia.

Marshall afirmou que a recuperação dos países europeus era do interesse econômico americano, e uma forma de garantir estabilidade e paz globais. No discurso, não delineou um plano exato, e conclamou os países europeus a proporem o formato de um programa de auxílio.

O conceito do Plano Marshall foi delineado em reuniões de representantes de Estados europeus, em julho de 1947. O auxílio financeiro foi oferecido também à União Soviética que, no entanto, recusou a oferta e impôs que outros países do bloco comunista fizessem o mesmo.

No total, 17 países foram contemplados com o auxílio americano: Áustria, Bélgica, Dinamarca, França, Grécia, Islândia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda, Noruega, Portugal, Suécia, Suíça, Turquia, Reino Unido e a parcela da Alemanha ocupada que posteriormente se tornaria a República Federal da Alemanha.

O nome oficial do programa era Plano de Recuperação Europeia, mas ele ficou popularmente conhecido como Plano Marshall, em referência ao secretário de Estado do governo Truman.

O general George Marshall fora chefe das Forças Armadas americanas durante o esforço de Guerra, entre 1939 e 1945, e a associação de sua reputação ao programa econômico contribuiu para garantir apoio popular e romper a resistência dos políticos isolacionistas e daqueles contrários ao aumento dos gastos no Congresso. O plano foi aprovado em março de 1948.

O governo americano já havia contribuído com uma quantia de US$ 4 bilhões por ano em auxílio econômico a países europeus, em 1946 e 1947. Mas o Plano Marshall estabelecia uma contribuição estável, em nível similar, com a qual os países contemplados poderiam contar pelos anos seguintes.

A ajuda financeira americana sob o programa durou até 1951, e chegou por meio de diversos canais aos países europeus, por isso há diferentes interpretações sobre o que efetivamente fez parte do Plano Marshall, e qual foi o aporte total.

Um artigo acadêmico publicado em 1991 por pesquisadores do National Bureau of Economic Research, uma instituição de pesquisa econômica ligada ao governo americano, contabiliza auxílio de US$ 13,2 bilhões que, em valores atualizados em março de 2020, correspondem a cerca de US$ 131,33 bilhões.

A maior parte do dinheiro foi doada, e uma parcela menor foi emprestada aos beneficiários.

Enquanto a maioria dos países tratou o dinheiro como doações, a Alemanha ocupada buscou gastá-lo de maneira mais cuidadosa, com o temor de que seria posteriormente obrigada a devolvê-lo. Ainda hoje, funciona no país um fundo bilionário formado a partir do Plano Marshall, que atualmente empresta dinheiro a pequenos empreendedores.

A maior parte dos aportes foi direcionada a compras de produtos dos próprios Estados Unidos, sendo que 60% foram gastos em comida e insumos para produção agrícola e industrial; outros 16,5% em combustível; 16,5% em maquinário e veículos; e 7% na marinha mercante americana, responsável por transportar os produtos dos Estados Unidos para a Europa.

Os principais contemplados foram:

Um outro aspecto importante do Plano Marshall foi a busca por promover o aumento da produtividade dos países europeus. Foram concedidas bolsas para que engenheiros europeus visitassem fábricas, fazendas e minas americanas. Além disso, técnicos foram enviados aos países europeus para avaliar a produtividade dos trabalhadores e elaborar relatórios com sugestões para melhorá-la.

Resultados do Plano Marshall

O Plano Marshall durou até 1951, e sua vigência coincidiu com anos de crescimento econômico acelerado. Durante o período em que a política pública vigorou, a economia do Reino Unido cresceu cerca de 3% ao ano em média; a da França, mais de 6% ao ano; a da Itália, cerca de 7%; e a da Alemanha, mais de 12%.

Ao fim do programa, a renda per capita dos países contemplados já era 10% maior do que o nível anterior à Segunda Guerra Mundial.

Do ponto de vista americano, o plano também serviu de estímulo, à medida que a maior parte dos insumos eram comprados dos Estados Unidos. Além disso, o programa também serviu para contrabalancear o enorme fluxo de dinheiro que vinha da Europa para os Estados Unidos, que tendia a valorizar excessivamente o dólar, prejudicando as exportações americanas.

Mesmo com o fim do Plano Marshall, o governo americano continuou a oferecer grandes volumes de auxílio financeiro por décadas.

Nas duas décadas seguintes ao fim do programa, o forte ritmo de crescimento europeu se manteve. Entre 1953 e 1973, o crescimento da economia da Europa foi de, em média, 4,8% ao ano. Em comparação, o ritmo entre 1922 e 1937 fora de 2,5% ao ano.

Há um debate historiográfico sobre se o Plano Marshall foi essencial para a recuperação da economia europeia, pois já havia sinais de recuperação antes desses aportes. Discutem-se também exatamente quais aspectos do programa tiveram impacto importante.

O artigo publicado em 1991 pelos pesquisadores do National Bureau for Economic Research avalia que o programa não foi essencial para a reconstrução da infraestrutura europeia -a parte mais relevante desse esforço já teria acontecido até 1947, diz o estudo.

Mas os autores levantam a hipótese de que o Plano Marshall foi relevante porque a disponibilidade de recursos garantiu que países europeus não entrassem em uma disputa destrutiva sobre qual deles deveria arcar com os custos da guerra, ao contrário do que ocorrera após a Primeira Guerra Mundial, quando pesadas taxas foram cobradas sobre os perdedores.

Além disso, os autores avaliam que a folga financeira pode ter garantido às economias europeias a estabilidade econômica e social necessária para encorajar a eliminação de controles sobre preços e mercadorias que haviam sido implementadas durante a guerra, impulsionando a integração das economias europeias.

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André Cabette Fábio

Jornalista colaborador do InfoMoney