Como aumentos no salário mínimo contribuíram para o golpe de 64

Getúlio Vargas criou o salário mínimo no Brasil e seu discurso populista sobre o assunto é um parte importantíssima da história econômica brasileira. Aumentos bruscos do dia para a noite foram parte relevante de uma espiral inflacionária que piorou continuamente de 1950 a 1964. Em meio ao colapso da moeda nacional, a instabilidade política se acentuou, contribuindo para o golpe.    

Pedro Menezes

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

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Na virada dos anos 1980 para os 1990, um pesquisador alemão chamado Rudiger Dornbusch estudou o “populismo econômico latino-americano”. Seu artigo mais influente sobre o assunto, publicado em 1991, abre com uma constatação poderosa: “A história econômica da América Latina parece se repetir eternamente, seguindo ciclos irregulares e dramáticos. Esse ciclo vicioso é nítido no que diz respeito ao uso de políticas populistas para fins distributivos”.

O populismo econômico latino-americano, nesta definição, é retoricamente baseado na revolta contra a pobreza e desigualdade, mas transforma esta justa causa em políticas insustentáveis. Populistas costumam ser irresponsáveis no controle da inflação, das contas públicas e do balanço de pagamentos.

Dornbusch destacava ainda o desprezo pelas reações do mercado às canetadas impensadas do populista, o que é particularmente importante na história que pretendo contar neste texto. A justiça social, que justificou a irresponsabilidade num primeiro momento, costuma sofrer quando a conta do populismo chega.

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Esses estudos tiveram grande influência quando publicados, num momento em que a América Latina se redemocratizava. A instabilidade política da região, com suas democracias frágeis e ditaduras violentas, era fortemente influenciada pelo populismo, segundo Dornbusch.

No influente livro que Dornbusch editou sobre o populismo latino-americano, Getúlio Vargas aparece como grande exemplar brasileiro. Ao fim deste texto, imagino que muitos leitores concordarão com a acusação. Ele era mesmo.

A política varguista para o salário mínimo era claramente populista

Muito poderia ser escrito sobre a inconsequência econômica de Getúlio Vargas. Nesta história, o salário mínimo é protagonista. Foi uma das mais influentes trincheiras do varguismo – e, portanto, do populismo econômico na história do Brasil.

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Entendo o economista que aprove a criação do salário mínimo por Getúlio Vargas. Por outro lado, não é possível negar o populismo econômico que norteou sua política de reajustes.

Entre os anos 1950 e o golpe de 1964, a política de salário mínimo foi marcada por elevações bruscas, implementadas do dia para a noite. Neste período, o salário mínimo chegou a ter aumento real – isto é, descontando a inflação – superior a 200%, triplicando de um mês para o outro.

Uma consequência direta desta medida, prevista pela teoria econômica, é a disparada da inflação.  Afinal, o aumento brusco do salário eventualmente é repassado para os preços, que também aumentam bruscamente.

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Não se trata de uma opinião minha. No manual da Organização Internacional do Trabalho sobre o assunto, está escrito: “Se o salário mínimo é fixado muito alto ou cresce muito, isto pode trazer efeitos inesperados aos custos do trabalho pagos por empregadores. Isto, por sua vez, pode servir como gatilho para o aumento de preços”.

Anos 1940: ascensão do salário mínimo, inflação e arrocho

O salário mínimo surgiu ainda em 1930, como uma das primeiras medidas de Getúlio Vargas após tomar o poder. Não há dados de inflação para a década de 1930, por isso também não há números para o valor real do salário mínimo. A série histórica começa apenas em 1940.

Nos anos 1940, já é possível observar o padrão que se intensificaria nos anos seguintes. O gráfico abaixo mostra o valor real do salário mínimo entre 1940 e 1950.

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Entre maio e dezembro de 1943, pouco mais de um ano antes de sair do poder, Vargas aumentou o salário mínimo em 40%. Sem surpresa, os preços dispararam. O IPC da FIPE/USP mostra que a inflação em 12 meses passou de 10% para 45% entre 1943 e 1944.

Naqueles tempos, o Brasil não tinha Banco Central. Nossos instrumentos para controlar a inflação eram menos poderosos e o salário mínimo assumia um protagonismo maior nas políticas de estabilização de preços. Esse método de estabilização costuma aparecer nos livros de história como “arrocho salarial” e foi usado, ainda que de modo distinto, pela ditadura.

A inflação, de fato, caiu. O IPC chegou a registrar deflação próxima a 5% no meio de 1949, a menor variação de preços em 12 meses na história do Brasil. Como parte do ajuste, o salário mínimo caiu de R$ 868 em dezembro de 1943 para R$ 311 em dezembro de 1951, sempre considerando preços de 2019.

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O arrocho salarial teve consequências políticas. Getúlio Vargas volta ao poder em 1951, tendo o salário mínimo como símbolo. A partir daí, o populismo seria ainda mais intenso. Em 1951, ainda nos primeiros da segunda era Vargas, a inflação rompeu o patamar dos dois dígitos. A partir de então, o Brasil demoraria mais de meio século para ter novamente um único dígito de inflação.

Anos 1950: o populismo se intensifica

Reverter a trajetória do salário mínimo era prioridade para Vargas. No início de 1952, primeiro reajuste do mandato, a promessa é cumprida com louvor após o maior aumento real do salário mínimo de toda a série histórica iniciada em 1940. Em dezembro de 1951, o salário mínimo equivalia a R$ 311 a preços de 2019. Em janeiro de 1952, subiu para R$ 952.

A título de comparação, o salário mínimo cresceu 113% entre 2001 e 2019, ao longo dos primeiros 18 anos do século. Parece muito? Naquela virada de 1951 para 1952, o salário mínimo cresceu 206% de um mês para o outro. Os preços, mais uma vez, reagiram junto, com a inflação superando 27,2% em 1952, o dobro do patamar registrado no ano anterior.

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O ambiente político já era instável em 1953, quando o deputado João Goulart (ele mesmo) assumiu o Ministério do Trabalho. Ligado a sindicatos, Jango passou a avaliar um novo aumento do salário mínimo. Em meio à instabilidade econômica, Vargas começava a estudar outra canetada.

Em fevereiro de 1954, 10 anos e 2 meses antes do golpe militar, o ministro Jango caiu em meio à polêmica sobre o assunto. Apesar disso, os sindicatos tiveram seu pedido atendido. Em primeiro de maio de 1954, Getúlio anunciou que o salário mínimo dobraria. Em julho, a medida entrou em vigor.

Em 5 de agosto de 1954, num país polarizado, Carlos Lacerda, líder da oposição, sofreu um atentado. Seguranças do presidente apareceram entre os principais suspeitos. Em 24 de agosto, Getúlio atirou no próprio peito. A inflação fechou o ano acima de 10%.

O suicídio de Vargas não matou o getulismo, nem a inflação, nem os aumentos súbitos no salário mínimo. No ano seguinte à sua renúncia como ministro, Jango voltou ao governo em cargo mais alto: vice-presidente da República. Nas eleições de 1955, o presidente eleito Juscelino Kubitschek teve apenas 35,68% dos votos – menos do que os 44,25% de João Goulart, seu companheiro de chapa.

Em agosto de 1956, ainda nos primeiros meses do mandato de JK, o salário mínimo cresceu 55% em termos reais. A inflação cresceu junto e voltou a superar 25% no fim de 1956. No fim de 1959, ano de outro aumento generoso, os preços já subiam a mais de 40% em 12 meses.

Anos 1960: colapso econômico e golpe militar

A inflação explica parcialmente por que JK não elegeu seu sucessor em 1960  – e também por que Jânio Quadros renunciou tão rápido, ainda nos primeiros meses de 1961.

O início do governo Jango fica marcado pelo maior salário mínimo da história do Brasil: R$ 1481,97. Em 1962, a inflação já superava inéditos 60% em 12 meses. Em 1963, passou dos 80%.

Em fevereiro de 1964, exatos 10 anos depois de sair do Ministério do Trabalho e desesperado em meio a uma crise política ainda maior, Jango implementa um aumento real de 87,2% no salário mínimo.

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Naquele cenário, pouco importava. Em março, mais de 13% do aumento dado em fevereiro foi anulado pelo aumento de preços e a inflação já superava 90% em 12 meses, marca que só voltaria a ser alcançada nos insanos anos 80.

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O desconhecimento desta parte da história de 1964 tem dimensões graves. Ainda hoje, toda e qualquer restrição a aumentos do salário mínimo é tratada por certas facções do debate público como maldade obetiva. E não é bem assim.

O tema merece discussão séria, sem rótulos. Aumentar o salário mínimo pode ser uma péssima decisão. Como Rudiger Dornbusch gostava de lembrar, o populismo gera injustiça social enquanto promete histericamente o contrário.

O salário mínimo não é o único determinante da inflação, assim como a inflação não foi a causa única do golpe. Mas este é um capítulo importante e pouco conhecido desta importante história. Em março de 1964, reinava a insatisfação popular com os preços caóticos. Aquele foi o último mês de democracia antes dos 21 longos anos da ditadura militar.

Gráficos de todo o período

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Pedro Menezes

Pedro Menezes é fundador e editor do Instituto Mercado Popular, um grupo de pesquisadores focado em políticas públicas e desigualdade social.